quarta-feira, 31 de julho de 2024

USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE LUIZ CLÁUDIO LINS

 



Cultura: saber identificar o que é perene, contundente, paradigmático, antológico e que releva a existência humana. Eis a tarefa. 

(Luiz Cláudio Lins – facebook, 16.1.2019)

terça-feira, 30 de julho de 2024

FRUTA: JARACATIÁ

 




O QUE É QUE HÁ NESSE TAL DE JARACATIÁ?



Falando assim, meio rápido, a palavra jaracatiá até parece um trava-línguas!

E, talvez, travar a língua seja o risco que se corre caso o consumo dessa fruta seja feito à fresco, afinal, o jaracatiá pode até parecer um mamão, mas de mamão é só a aparência mesmo.

Ambas são da família Caricaceae, muito semelhantes, mas o jaracatiazeiro é uma árvore bem maior que o mamoeiro, podendo chegar até 20 metros de altura.



Interessante é que, embora muito alto, o jaracatiazeiro não apresenta tronco lenhoso e, em algumas regiões, o fruto é usado para a produção de doce.

Embora nativa da Mata Atlântica, a árvore já não é assim tão abundante, e quase sumiu em alguns estados do Brasil. Atualmente, é mais encontrada em regiões de cerrado.

Essa espécie apresenta flores femininas e flores masculinas, separadamente, e a ação de polinizadores é necessária para garantir o surgimento dos frutos (aaahhhhhh o amor!!).

Jaracatiá: O Fruto

Os frutos, também conhecidos como mamão-bravo ou fruta de macaco, têm formato, cor e sementes, super parecidos com mamões. Porém, tem um leite característico que pode queimar a língua e lábios e, por isso, não é recomendado comer a fruta in natura.



A opção por se usar o fruto na culinária, além de preservar a árvore, garante a colheita todos os anos. Menos mal, já que o jaracatiazeiro demora em média 4 anos para começar a produzir.

Além de ser delicioso, o jaracatiá também é muito nutritivo! De acordo com análises, o jaracatiá tem em média o dobro da quantidade de carotenoides e mais cálcio, fósforo, ferro e magnésio do que o mamão.


Fruta tradicional

Há quem diga que o doce de jaracatiá é uma das melhores compotas e, em São Pedro, interior de São Paulo, o doce de jaracatiá é uma tradição municipal!

O Festival do Jaracatiá, dia do ano totalmente dedicado à exposição de receitas feitas com a fruta, é possível experimentar até cupcake com essa fruta, que é considerada um patrimônio por lá.


Fonte:

Escrito por: Raquel Salviatto





sábado, 27 de julho de 2024

ERUDIÇÃO: PADRE KIRCHER E AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

 


Padre Athanasius Kircher (1602-1680)

Fazia um pouco de frio em Roma no dia em que padre Kircher morreu, aos 78 anos de idade, em 27 de novembro de 1680. O sol praticamente não apareceu, e um vento frio fazia a sensação térmica piorar. No entanto, a vida seguia normal. A missa foi cantada em todas as igrejas da Cidade Eterna no horário habitual. O comércio abriu normalmente. Enquanto isso, as pessoas circularam pela rua para seus negócios, compras e amores.

Fazia já alguns anos que padre Athanasius Kircher andava doente. Surdo, sem enxergar direito e com lapsos grandes de memória, ele raramente saía de sua cela. No entanto, ainda produzia: em carta daquele mesmo mês de novembro, provavelmente ditada por ele, padre Kircher se desculpava com seu interlocutor por causa de suas “mãos trêmulas”.

Com sua morte, desapareceu de cena uma das personalidades da cultura mais interessantes do século XVII. Isso não é pouco, num século que começa com Giordano Bruno, Galileu Galilei, René Descartes, Baruch Spinoza e vai até Isaac Newton, entre tantos outros.

SABIA TUDO E NÃO ENTENDEU NADA?

Padre Kircher comandou, a partir da Biblioteca do Vaticano, que ele dirigiu por mais de cinquenta anos, um dos maiores projetos culturais de que se tem notícia. Seus mais de quarenta livros e seus inventos abrangem praticamente todas as esferas do conhecimento, desde a Linguística até a Geologia, a Física e a Química. Ele foi, segundo a historiadora Paula Findlein, sua biógrafa, “o último homem que sabia de tudo” (deixe Jeff Bezos mais rico aqui).


Padre Kircher recebendo visitantes na Biblioteca Vaticana

Claro que tal ambição tem seu preço. Conhecer tudo significa conhecer um pouco de tudo. Apesar de ser um erudito no mais amplo sentido da palavra, Kircher cometia gafes e frequentemente fazia falsas interpretações. Quando leu o livro que padre Kircher escreveu tentando decifrar os hieróglifos egípcios, o também polímata Gotfried Leibniz (1646-1716) escreveu: “ele [Kircher] não entendeu nada!”.

Da mesma forma, o erudito inglês Johann Burkhardt Mencke (1674-1732) escreveu “De Charlataneria eruditorum” [A charlatanice dos eruditos], no qual faz uma imagem devastadora de Kircher. Sua caricatura de um charlatão escrevendo coisas estúpidas e sem sentido foi a imagem que ficou do Jesuíta para a posteridade.

No entanto, passado tanto tempo, cabe perguntar: quem foi padre Kircher? Qual o seu alcance e seu significado? Quais seus pressupostos e qual sua visão de mundo? Em anos recentes, apareceram uma série de livros e artigos revisitando e colocando sua vida e sua obra em perspectiva histórica. Um novo Kircher surgiu.


CONHECIMENTO SEM LIMITES

Athanasius Kircher nasceu em Geisa, na Alemanha, em 1602. Era o último de nove filhos de uma família burguesa escolarizada. Segundo sua autobiografia, o jovem Athanasius era um “estúpido propenso a acidentes”. Fez seus estudos no Colégio jesuíta de Paderborn, de onde quase foi expulso por sua saúde fraca. Quando finalmente se formou, em 1627, foi admitido na prestigiosa Companhia de Jesus. Além disso, foi ser professor de grego e siríaco em Heilingenstadt, onde seu pai também havia lecionado.

Fascinado pelo Oriente, Kircher pediu para ser enviado como missionário para a China, mas foi recusado pela sua Ordem. Logo a seguir, ele teria que se mudar: a Alemanha estava sofrendo com a Guerra dos Trinta Anos, entre protestantes e católicos. O católico e jesuíta Kircher se refugiou em Avignon na França em 1632, fugindo das tropas protestantes do Rei Gustavo Adolfo da Suécia.

De lá, Kircher foi para Roma, onde ficou até o fim de sua vida. Na Cidade Eterna, construiu uma reputação de homem com muitos segredos e possuidor de textos secretos. Muitos não acreditavam nele, mas o padre Kircher parecia não se importar com isso. Passou a estudar, escrever e fabricar instrumentos os mais diversos.

Trabalhando na Biblioteca do Vaticano, padre Kircher foi logo conquistando seu espaço. Seus livros começaram a ficar famosos, e sua reputação ia aumentando. Padre Kircher escreveu sobre os hieróglifos egípcios, sobre o magnetismo, sobre ótica, sobre os subterrâneos terrestres, sobre a história de Roma. Sobre quase tudo.

É claro que muitos perceberam seus limites. Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637), filosofo e botânico francês e um dos eruditos mais influentes da época, logo entendeu que os talentos de Kircher eram limitados. No entanto, percebeu seu entusiasmo e energia e apoiou várias das iniciativas do jovem Jesuíta.

KIRCHER DESCE AO INTERIOR DA TERRA

Um dos livros mais famosos de Kircher foi o Mundus Subterraneus, de 1665. Nele, padre Kircher expõe sua visão de mundo, fortemente marcada pelo Neoplatonismo e pelo Hermetismo. Para ele, a Terra era uma só, um imenso organismo vivo, governada pelos elementos fogo e água.

O fogo é representando pelo sol, pelo enxofre e por Hermes Trismegisto (o três vezes grande). É o fogo que vemos nos vulcões que Kircher representou como sendo um todo interconectado. Para entender os vulcões, Kircher desceu á cratera do Vesúvio logo após uma erupção em 1638. Também realizou viagens de estudo para Creta, Malta e Sicília,

AS MONTANHAS DA LUA

A água, por sua vez, é representada pelos oceanos, rios e fontes, e também pela Lua. Estudando a origem dos grandes rios do planeta, Kircher conclui que estes estavam interconectados com as grandes cadeias de montanhas. O Nilo, o Danúbio, o Ganges e o Amazonas seriam formados por grandes lagos subterrâneos, localizados justamente nas grandes cadeias de montanhas. O Nilo nasceria no coração da África nas “Montanhas da Lua“. As tais montanhas não existiam, mas é uma prova de que Kircher sabia se aproveitar de relatos de viajantes e construir o seu próprio. No século XIX não poucos viajantes europeus percorreram as nascentes do Nilo atrás destas míticas montanhas. Para Kircher, as fontes eram a conexão do interior com o exterior da Terra pela água. Para ele, a união do sol masculino com a lua feminina realizada na terra dá ao planeta seu caráter “neutro”.



As nascentes do Amazonas em uma caverna subterrânea sob os Andes

Esta visão “holística” do planeta é uma das características da visão neoplatônica de Kircher. O resultado é esta aparente confusão barroca, que une o microcosmo e o macrocosmo, como se um fosse a extensão do outro. Para tanto, Kircher usa da metáfora, da alegoria e do simbolismo para mostrar os sinais da glória de Deus na natureza.

AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

A paleontologia de Kircher é uma das mais interessantes facetas de sua obra. Em seus livros, contudo, Kircher distingue claramente os fósseis que “são produtos de petrificação de animais e conchas” de outros que são símbolos e alegorias. No primeiro time, estão as coquinas representadas no Mundus Subterraneus (figura abaixo). No outro, as pedras que reproduzem a face de uma garça, uma coruja, ou Nossa Senhora com o menino Jesus. Para Kircher, tais representação não tinham nenhuma causalidade. Eram somente “lusus naturae”, ou seja, brincadeiras da natureza.


As coquinas de Padre Kircher: prova de origem inorgânica dos fosseis

Entretanto, uma leitura apressada da obra de Kircher sugere para muitos somente um lunático (e ainda por cima Jesuíta!) que enxerga figuras absurdas impressas nas rochas. Da mesma forma outros pensavam no padre Jesuíta como um fanático reacionário que é contra a “visão correta” dos fósseis como restos de animais tal como conhecemos hoje. Entretanto, nenhuma destas visões enxerga Kircher como ele deve ter sido.

Kircher sabia que havia fósseis formados por restos de animais. Durante suas viagens à Sicília, ele encontrou e representou no Mundus Subterraneus animais com aparência moderna achados nas rochas.

As outras indicações de “pedras figuradas” representam, para Kircher, uma interconexão entre micro e macrocosmo. Desta forma, dentro de sua visão de mundo, estas pedras eram as provas da sabedoria de Deus. Para ele, a discussão sobre a origem orgânica ou inorgânica dos fosseis e das rochas que as continham não estava posta. A sua “pira” era outra.


As pedras “figuradas”, com significados simbólicos: garças, pombas, corujas e outras figuras

FUJA DA INQUISIÇÃO, PADRE KIRCHER!

Entretanto, a visão de mundo de Padre Kircher era posta constantemente em cheque pelos censores da Companhia de Jesus. Não era pra menos. Por causa de suas ideias neoplatônicas (e por sua defesa do Sistema Copernicano) Giordano Bruno havia morrido na fogueira em 1600, dois anos antes de Kircher nascer. Quando o jovem Kircher chegou à Itália, em 1632, o processo contra Galileu ainda corria, tendo grande publicidade.

Um padre que em seus livros citava Hermes Trismegisto, fazia experimentos alquímicos e construía instrumentos estranhos deve ter chamado atenção dos censores, como realmente chamou. Contudo, Kircher soube contornar e aparar as arestas entre suas ideias do mundo natural com as demandas da inquisição. Não deve ter sido fácil.

A VIDA QUE SEGUE

Quando padre Kircher morreu, o dia estava frio e cinzento em Roma, mas não por causa dele. Enquanto isso, durante os mais de cinquenta anos que ele permaneceu ali na frente da Biblioteca do Vaticano, o mundo havia mudado muito. Agora, graças a uma notável rede de sábios e eruditos, a ciência moderna estava em franca expansão.

Neste período, o surgimento de novas sociedades cientificas, os primeiros journals, as correspondências de filósofos naturais por toda a Europa (e mesmo na América) haviam mudado o ponto da discussão.

Antes de tudo, o mundo quando Padre Kircher morreu era mais racionalista e mecanicista, baseado mais nas ideias de Descartes e Newton, entre tantos outros. Para isso, a nova ciência que surgia prescindiria de ideia de um Deus ou de qualquer explicação metafisica para fazer a natureza funcionar. Com isso, não havia mais espaço para o sobrenatural, para o maravilhoso e para o espanto. Sobretudo, não havia mais espaço para o padre Kircher.

Fazia frio e ventava no dia em que padre Kircher morreu, mas não por causa de alguma vontade divina. Fazia frio e chovia por causa das correntes de ar atmosférico sobre o Mediterrâneo. Enquanto isso, os pássaros no outono migravam para o sul. As placas tectônicas seguiam se movimentando, podendo provocar terremotos ou erupções vulcânicas. As fontes seguiriam jorrando água.

No dia seguinte, uma missa foi rezada pela alma de um padre velhinho que morrera naquela noite fria.



SUGESTOES DE LEITURA

Findlen, P. (Ed.). (2004). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. Routledge.

Gould, S. J. (2004). Father Athanasius on the isthmus of a middle state. Athanasius Kircher: The last man who knew everything, 201-237.



Autor: Jefferson Picanço


23 de março de 2018

Sobre Jefferson Picanço

Possui graduação em Geologia Pela Universidade Federal do Paraná (1989), mestrado (1994) e doutorado (2000) em Geociências (Geoquímica e Geotectônica) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor do Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas. Entre os seus atuais interesses de pesquisa estão Gestão de Desastres, Cartografia Geotécnica e História das Ciências Naturais. Ver todos posts de Jefferson Picanço →

quarta-feira, 24 de julho de 2024

MÚSICA: A MORTE DE JULINHO DE ADELAIDE

 




"Eu me lembro até da cara do Samuel Wainer quando disse que estava pensando em entrevistar Julinho da Adelaide para o jornal dele. Ia ser um furo. Julinho da Adelaide, até então, não havia dado entrevistas. Poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. Pouco se sabia de Adelaide. Setembro de 74. A coisa tava preta.

- Ele topa?

- Quem, o Julinho?

- Não, o Chico.

Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar. |

Quando eu achava que estava tudo pronto Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois. Lá em cima, na cama de solteiro que tinha sido dele, criou o que restava do personagem.

Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais Dona Maria Amélia que balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de balançar os quadris.

Julinho, ao contrário de Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite nessa única entrevista a um jornalista brasileiro.

Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado um depoimento ao brasilianista da Universidade de Berkeley, Matthew Shirts. Mas ninguém teve acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa, interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de morrer, ainda criando palavras cruzadas para o “Jornal do Brasil”, afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de 1974, na rua Buri, para o jornal 'Última Hora'.”

No recorte reproduzido acima da reportagem "Julinho da Adelaide, 24 anos depois", o jornalista e escritor Mário Prata fala dos bastidores de "O Samba Duplex e Pragmático de Julinho da Adelaide", a histórica entrevista por ele publicada com o recém-descoberto compositor carioca; na verdade, um heterônimo de Chico Buarque, que então usava esse recurso para driblar a mordaça da censura.

Da cepa rara de Julinho, saíram três composições memoráveis, "Acorda, Amor", "Milagre Brasileiro" e "Jorge Maravilha". Com atraso, com afeto e ainda em tempo: na última quarta-feira, mais conhecida como ontem (19), Chico Buarque completou 80 giros em torno do Sol. Viva!!!




domingo, 21 de julho de 2024

FRUTA: JABUTICABA

 

Jabuticaba: brasileira até o caroço



A mais brasileira das frutas tem aparência de durona. Puro disfarce. Um apertão... e ploct. A jabuticaba explode e expele sem resistência sua polpa doce e esbranquiçada. Bom mesmo é comer arrancando direto do pé, escolhendo as mais graúdas. Ou de baciada, uma atrás da outra.


(Felipe Rau/AE)


Como tem apenas uma safra por ano, entre agosto e novembro, fim de inverno e primavera, a jabuticaba é a fruta que nos ensina a esperar. Fora de época, não chega às gôndolas do mercado nem às feiras livres - vez ou outra há uma safrinha entre fevereiro e abril, mas não o suficiente para ser comercializada. Por isso, quando chega a primavera, ninguém quer dar à jabuticaba outro fim que não seja o da ladroíce no pé. É nessa época que ela (re)aparece nos cardápios dos restaurantes, transformada em sorbets, caldas, caipirinhas e "jabuticabas" - como chamam as esferas da fruta feitas por Helena Rizzo no Maní.

Da família das mirtáceas - a mesma da pitanga -, a jabuticaba é uma fruta exclusivamente brasileira, típica da Mata Atlântica. Apesar de haver cerca de 15 variedades da fruta, pouca gente distingue bem uma da outra, diferentemente de bananas (prata, maçã, nanica) e laranjas (lima, baía, pera). É que a única jabuticaba amplamente comercializada é uma espécie chamada sabará (Myrciaria jaboticaba), considerada a mais doce. A paulista (Myrciaria cauliflora), maior e mais azedinha, também pode ser encontrada.

Um tipo raro e incomum bastante cultuado no universo jabuticabeiro é a branca (Myrciaria aureana), que, diferentemente de todas as outras, é verde. As variedades restantes? Só procurando de pomar em pomar.

O cultivo de jabuticaba se concentra no centro-sul, em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Goiás, onde chove bastante - solo úmido é essencial para manter a jabuticabeira fértil. Nas outras regiões a fruta também é produzida, mas não com tanta fartura. E ela já chegou até a outros países: há produção na Flórida, Estados Unidos; em países latino-americanos como a Argentina e até no Japão - em Shizuoka, o produtor Yoshinari Nishikawa tem uma plantação, aberta à visitação, com mais de cem árvores.

Mas a verdade é que a jabuticaba é uma fruta que não gosta de sair de casa, seja deste lado ou do lado de lá do mundo. Estoura à mínima pressão e começa a fermentar no mesmo dia da colheita. Além disso, é uma planta sem pressa, descansada, que demora mais de uma década para dar os primeiros frutos - daí a grande quantidade de jabuticabeiras híbridas ou "produzindo" à venda.

E, quando finalmente dá fruta, é arrebatadora: "Não acredito, a jabuticabeira aqui de casa deu fruto pela primeira vez! Ia fotografar, mas comi o potinho inteiro, antes. Doces! Demorou uns 15 anos para se manifestar", escreveu recentemente a escritora Nina Horta em seu blog. A mesma Nina tentou adivinhar o deslumbre de Paul Bocuse frente à fruta, em capítulo de Não É Sopa, com a citação: "La jabuticaba n’est pas pour le bec de tout le monde. Extraordinaire..." ("jabuticaba não é parao bico de todo mundo. Extraordinária").

A fruta povoa também um capítulo inteiro de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. É lembrada por Guimarães Rosa em Primeiras Estórias e homenageada por Bebel Gilberto ("If I could name a fruit for you it would be jabuticaba") e Gilberto Gil ("É o Grande Sertão: Veredas, Reino da Jabuticaba").

O Paladar dedica a reportagem de capa desta edição à brasileiríssima jabuticaba. Jabu o quê? É, ela é um trava-língua para estrangeiros. Mas não há quem não se renda a ela.


Com ou sem caroço?


Não tem certo e errado, mas "jabuticaholics" juram que é melhor cuspir. Por três motivos: se você engole o caroço de uma vez, não ‘curte’ a polpa que o envolve - e a ideia é que antes de cuspir você o chupe. Se engolir direto, perderá a chance de mordiscá-lo e sentir o sabor azedinho. Por último, o caroço causa prisão de ventre.


Jabuticaba de beber


A casca tem um leve amargor, a polpa é extremamente doce; e o caroço, azedinho. Por unir em uma só fruta qualidades tão distintas, a jabuticaba é ótima para ser "engarrafada".

Além do bom sabor, as bebidas com jabuticaba saem na frente em relação aos pratos no quesito durabilidade - você consegue manter a jabuticaba o ano todo na despensa. Prova da versatilidade da fruta é a galeria com as bebidas ao lado. Uma caipirinha para abrir o apetite, um licor ou um "vinho do porto" para fechar a refeição, o frisante para acompanhar o prato principal ou uma cerveja com petiscos? É só escolher.


Caipirinha


Refrescante como toda caipirinha, tem a vantagem de ser feita com uma fruta muito doce, que ‘quebra’ o álcool da cachaça envelhecida Jacuba de Ouro (MG). É servida no Mocotó (Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.100, 2951-3056)



Licor


Para quem gosta de terminar as refeições com um sabor doce. Leva jabuticaba, açúcar e cachaça. Andrea Kaufmann, do AK (R. Fradique Cotuinho, 1.240, 3231-4496), tem uma versão com vodca que lembra uma batida


Vinho 'do porto' e frisante


O 'porto' é ácido e agradável, com boa presença de jabuticaba. Menos doce que o licor. Já o cheiro do frisante lembrou lata de sardinha; agradou menos. Empório do Abade (Av. Brig. Luís Antônio, 2.013)


Cerveja


A mineira Falke Vivre Pour Vivre nasceu de um lote de tripel Monasterium que sofrera ação láctica. Adicionou-se suco de jabuticaba. Resultado: notas da fruta e boa acidez. Alto dos Pinheiros. R. Vupabussu, 305.



Fonte:

Nana Tucci - Especial para o Estado




quinta-feira, 18 de julho de 2024

CINEMA: DISCURSO FINAL DE ‘O GRANDE DITADOR’, DE CHARLIE CHAPLIN (1940)

 


“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.”

– Charlie Chaplin, em ‘trecho do discurso proferido’ no final do filme “O grande ditador”.

Em meio à Segunda Guerra Mundial e diante de toda a barbárie trazida pelos conflitos, bem como a ascensão dos regimes totalitários na Alemanha e Itália, a genialidade de Charlie Chaplin, mais uma vez, surpreende todo o mundo e marca indelevelmente a história do cinema.

Com o filme “O grande ditador”, de 1940, Chaplin conseguiu captar e retratar o que se passava na Europa no período entre guerras realizando uma sátira que, apesar de cômica, traz uma ácida crítica ao nazismo e ao fascismo, demonstrando o quão absurdas eram as suas ideias e apontando as nefastas consequências de suas políticas de dominação e seleção social.

No filme, Chaplin interpreta dois personagens, o barbeiro judeu que havia sido soldado da Tomânia (país fictício com referência à Alemanha) durante a Primeira Guerra e o ditador Heynkel (clara sátira de Hitler).

“O grande ditador” é muito rico em conteúdo. As sátiras e críticas à guerra e ao autoritarismo estão presentes em suas cenas e em suas personagens. No entanto, uma das cenas mais marcantes e importantes do filme está no discurso final. Por ser seu primeiro filme falado, Chaplin aproveitou para deixar ao mundo um recado que ressoa até nos dias de hoje.



O discurso:



“Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio… negros… brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia… da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… que vos desprezam… que vos escravizam… que arregimentam as vossas vidas… que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!.”



Fonte:

Revista Prosa Verso e Arte




sábado, 13 de julho de 2024

CIÊNCIA: POR QUE DEVEMOS PARAR DE FAZER APOLOGIA AO “NATUREBA”

 

NEM TUDO QUE É NATURAL É NECESSARIAMENTE BOM, E CABE À CIÊNCIA DOMINAR A NATUREZA PARA MELHORAR NOSSAS VIDAS



Somos submetidos constantemente a mensagens que sugerem que tudo que é derivado da natureza é bom para a nossa saúde. É uma presunção incorreta, pois não há nenhuma correlação entre a origem natural ou sintética de uma molécula e sua capacidade de ser perigosa ou benéfica para nós, humanos. De fato, eu prefiro evitar várias coisas completamente naturais, como ser picada por uma cobra, abrigar vermes parasitas nos meus intestinos ou pegar viroses epidêmicas. No entanto, se entramos numa farmácia, nos deparamos com dezenas de produtos cosméticos e suplementos derivados de plantas ou algas diversas, exibindo etiquetas proeminentemente indicando conter componentes da natureza. O consumidor geralmente assume que produtos que contêm componentes naturais são bons para a saúde, não causam efeitos colaterais, e são de modo geral desejáveis.

A apologia ao “natureba” não se restringe às farmácias e também invadiu nossos supermercados. Neles, encontramos enorme quantidade de produtos etiquetados como “orgânicos”, ou produzidos sem uso de fertilizantes e pesticidas “artificiais”. O entendimento geral é que moléculas não naturais usadas para produzir nossa comida são ruins, enquanto o que vem diretamente da natureza nos faz bem. Esse entendimento é reforçado pelo fato de a comida orgânica ser mais cara, e portanto percebida como melhor. Investir nesse tipo de alimento, no entanto, é um péssimo negócio, pois não há nenhum benefício à saúde na ingestão de alimentos orgânicos, fora o efeito psicológico de se associar com a causa “natureba”.

Parte desse efeito psicológico positivo associado a comprar produtos orgânicos provavelmente se deve à percepção de que esse tipo de agricultura “natureba” é natural, e portanto preserva o meio ambiente. Porém, na agricultura orgânica se utilizam fertilizantes menos eficazes e há perdas maiores dos produtos para pragas agrícolas. O resultado é que esse tipo de agricultura requer maiores áreas de cultivo para produzir a mesma quantidade de comida, e essas maiores áreas plantadas podem promover maior perda de áreas naturais preservadas. Além disso, por causa da maior área necessária para a produção, estudos indicam que a agricultura orgânica provoca maior emissão de gases que contribuem para mudanças climáticas.

Mas se a agricultura orgânica não é melhor para o ambiente, não seria melhor para nós por evitar a ingestão de pesticidas, que são potencialmente causadores de câncer? O bioquímico norte-americano Bruce Ames, criador de um teste altamente eficaz adotado mundialmente para detectar compostos capazes de mudar o DNA e causar cânceres (o teste de Ames), também criou um ranking de moléculas carcinogênicas (geradoras de câncer) encontradas em frutas e verduras comerciais. Ele viu que pesticidas adicionados a plantações estavam presentes em concentrações minúsculas, milhares de vezes menores que moléculas naturais que as plantas produzem. Plantas geram seus próprios pesticidas para sobreviver a insetos e outros predadores. Essas moléculas naturais são tão perigosas quanto pesticidas criados pelo homem, e compõem 99,99% dos carcinógenos presentes nas nossas frutas e verduras. Deste modo, pesticidas naturais, e portanto presentes em culturas orgânicas, são muito mais perigosos que pesticidas produzidos pelo homem, simplesmente por causa da sua enorme abundância relativa.

A natureza é, de fato, um ambiente extremamente hostil, onde cada organismo vivo precisa estar evolutivamente preparado para se defender e sobreviver, ou será superado ou comido por outro organismo vivo. Nessa fantástica luta pela sobrevivência, bactérias possuem estruturas fascinantes em forma de agulha para injetar toxinas em outras bactérias competidoras. Plantas como a corriqueira mandioca naturalmente geram compostos cianogênicos (que produzem a toxina cianeto) para se defender contra animais que as comem (por isso é importante monitorar sua produção, para controlar níveis dessas toxinas). Animais como aranhas, escorpiões, serpentes, sapos e até o simpático ornitorrinco desenvolveram toxinas poderosas para se defender e sobreviver. A natureza não é um ambiente de coexistência bucólica, como o modismo natureba nos faz crer, e sim fascinantemente variada na sua violência entre espécies competidoras.

Temos que ao mesmo tempo respeitar, admirar e estudar esses mecanismos de violência entre espécies, mas nunca desprezar algo natural como inofensivo. Entender e estudar essas defesas naturais através da Ciência é não somente uma maneira de evitar acidentes com essas toxinas, mas também a única maneira de aprender a usar, purificar e melhorar essas moléculas em nosso benefício. Um exemplo são os antibióticos, usados clinicamente para matar bactérias infecciosas, e em grande parte derivados e melhorados por cientistas a partir de moléculas produzidas por outros microrganismos que estavam se defendendo na Natureza. A Ciência se inspira na Natureza, e a domina para melhorar nossas vidas, de modo detalhadamente analisado e comprovado.

É 2020. Vivemos numa sociedade em que pessoas fazem filas em lojas para ter a última tecnologia em celulares, monitoram seus batimentos cardíacos e atividade física continuamente com relógios inteligentes e passam horas por dia na internet, aproveitando da tecnologia da informação para seu trabalho e lazer. Nesse mundo repleto de benefícios modernos, não há nenhuma justificativa para fazer apologia ao mundo natural quando se trata de nossa saúde e alimentação. Deveríamos exigir a mais avançada tecnologia, cientificamente verificada, para nossos alimentos, medicamentos e cosméticos. Chega de modismo natureba!



Fonte:

Autora: Alicia Kowaltowski

12 de fev de 2020




Alicia Kowaltowski é médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. 

terça-feira, 9 de julho de 2024

CINEMA: “O SÉTIMO SELO” DE INGMAR BERGMAN: JOGANDO XADREZ COM A MORTE

 



Tive a grata satisfação de participar do “Cineterapia”, um projeto implementado pelo Centro Acadêmico do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). O objetivo é suscitar discussões de caráter psicológico a partir da linguagem do cinema. Nossa tarefa foi comentar o filme “O Sétimo Selo” (1956) do diretor sueco Ingmar Bergman a luz da Tanatologia. (acesse AQUI a página do “Cineterapia” no facebook)

Essa foi a sexta vez que assisti a este filme. A cada nova oportunidade percebo novas nuances. Digamos que dessa vez senti o filme mais eloquente em seu personagem principal: a Morte! Ter 50 anos de idade nos coloca tecnicamente além do que se convenciona chamar de “meia idade”, afinal, são poucos os que chegam aos 100 anos. Digamos que o “ofício” de tanatólogo e o tempo nos deixa cada vez mais sensível às mensagens da finitude.

“O Sétimo selo”, produzido a partir de uma peça de teatro (“O Retábulo da Peste”), permite leituras diversas. Uma delas poderia nos fazer cair na tentação de reduzir o filme a uma mera expressão da individualidade do seu diretor, como projeção de seus conflitos, dúvidas e anseios. Óbvio dizer que isso seria inerente a qualquer manifestação artística. Ao olharmos uma pintura ou ouvirmos uma música, bastará algumas informações biográficas do artista para estabelecermos os elos entre a obra e seu autor. No entanto, o autor não é único na sua produção na medida em que as individualidades são também sínteses complexas de sua época em amalgama com a herança histórica do gênero humano.

Assim, optei por outro caminho. Vejo em “O Sétimo Selo” uma espécie de alegoria do homem diante da morte. Cada um dos seus personagens parece encarnar atitudes diante da morte e do morrer correlatas a grupos, sociedades, culturas, filosofias e civilizações inteiras. O cenário onde a textura do enredo se constrói é a grande “Peste Negra” que assolou a Europa de 1348 a 1352. Cifras da época permitem aos historiadores de hoje calcularem que a pandemia ceifou a vida de 30% a 40% de uma população presumível de oitenta milhões de pessoas. É nesse cenário de absoluto medo e terror que a morte se apresenta, não só como a certeza mais absoluta como também um elemento que se toca, vê e se respira o tempo todo! Não entraremos aqui em mais detalhes históricos sobre a pandemia. Basta imaginar seu caráter de letalidade associado a incapacidade do conhecimento humano em se lidar com seus aspectos sanitários pois não existia terapêutica que fosse eficaz. Da noite para o dia, comunidades inteiras poderiam desaparecer, grupos entrelaçados por séculos de valores culturais tinham sua memória destroçada.

É nesse cenário em que temos Antonius Blok um cavaleiro medieval e Jons, seu escudeiro. Ambos estão retornando das cruzadas para seus lares. Pensam ter fugido do inferno da guerra mas se deparam agora com o inferno da peste. Na relação entre cavaleiro e escudeiro se apresenta a dicotomia clássica da relação do home com a morte, o enfrentamento de concepções de cunho metafísico-espiritual versus concepções de cunho materialista. O cavaleiro, por vezes preso a dúvidas, tenta reafirmar a crença na possibilidade da vida após a morte. Para isso prende-se na crença em Deus mesmo que em luta diante da constatação que esse Deus parece não escutá-lo. Já o escudeiro aponta na direção contrária. Quase como um Nietzsche medieval, não vê finalidade alguma na vida. Acha sem sentido a discussão de um sentido para ela. A morte não apresenta questão alguma pois ela afirma apenas certeza do nada. O que temos na verdade é a vida como um fluxo de ações na existência. A morte nos levaria às trevas do não sentir. Portanto, vamos aproveitar tudo o que a vida pode oferecer.

Em meio as observações do cavaleiro e do escudeiro, temos a trupe de teatro mambembe, uma aparente metáfora de Bergman sobre a necessidade da arte frente ao desalento produzido pela idéia da morte, a manifestação artística como potência de vida. Essa impressão é claramente reforçada pela associação da maioria das cenas onde os atores aparecem com o sexo, a luz, a alegria, a festa. Chama a atenção aqui a figura de Jof o líder dos atores. Ele expressa a capacidade de ter visões que são o tempo todo questionadas pela esposa. Aqui nos deparamos com a necessidade da experiência religiosa diante da morte. Uma coisa parece estar imbricada na outra. Caso realmente a vida seja algo sem finalidade, um dos desafios da existência seria a produção dessa finalidade. A experiência religiosa apresenta-se assim como um dos antídotos ao “veneno” da consciência da morte. Mas ela é tão intensa para algumas pessoas que não se pode mais ter certeza dos limites que separam a experiência religiosa do que chamamos de realidade. As visões expressam exatamente isso. Algo que é visto mas que não é percebido por todos, algo que expressa aspectos constitutivos do real em seus componentes mas que o nega ao mesmo tempo.

Existe uma cena clássica no filme que, a meu ver, parece trazer uma intensa reflexão. Trata-se do momento em que o cavaleiro se encontra com a morte. Ela está pronta para levá-lo. O cavaleiro diz que está preparado mas que sente medo. Tenta então escapar de sua sina propondo uma partida de xadrez com a morte. Caso ganhe, a morte o poupará, caso perca, será levado por ela. De pronto a morte aceita o desafio. Assim, no restante do filme, a cena do jogo irá acontecer algumas vezes. Em alguns momentos parece que o cavaleiro irá vencer. Os dois chegam a construir uma relação quase amistosa. A morte se apresenta de uma maneira essencialmente humana embora seu rosto pintado de branco em meio a uma roupa preta que cobre o corpo todo lhe dê a semelhança de um palhaço, um contraponto estético frente às ideias clássicas da morte como anjo aterrador ou um ceifeiro com roupas andrajosas e o corpo em decomposição. O cavaleiro criva a morte com perguntas sobre o sentido da vida. Para seu desalento, a morte parece não ter resposta alguma que transcenda sua tarefa. Maravilhosa a cena em que o cavaleiro pensa estar conversando com um padre no confessionário. Revela estar jogando xadrez contra a morte e compartilha o estratagema que o levará à vitória para logo a seguir perceber que o padre era a própria morte disfarçada. Não há como escapar de tão exímia jogadora. Óbvio que dessas escaramuças a morte sairá vencedora.

Hoje em dia não estamos “jogando” com a morte, não a convidamos para o jogo de xadrez. Caso você tenha aprendido a jogar xadrez com um mestre sabe que vencê-lo é praticamente impossível. Entretanto, ao jogar contra ele, seu próprio jogo melhora em estratégia, você se torna um jogador melhor. Ao nos negarmos a jogar contra a morte não aprendemos a viver com ela que, como nos diz no filme, tem estado a nossa espera desde o dia em que nascemos. Exploremos mais essa metáfora. A maioria de nós foi ensinada a produzir uma arte de fugir da morte. Isso está expresso por mensagens mais ou menos sutis no cotidiano. Falar sobre a morte num sentido existencial tornou-se um gesto de “mau gosto”, os amigos tentam logo reconduzir a conversa para assuntos que digam respeito a “vida”. Quando vamos aos velórios em ambientações mais requintadas, voltadas às classes médias urbanas, nota-se que as sinalizações da morte são apagadas, restando ao cadáver uma sala discreta com o corpo coberto de flores só nos deixando perceber o rosto que pode ter sido trabalhado com necromaquiagem para negar a aparência da morte.

Mas existem sinais mais dramáticos. Quando não queremos jogar xadrez com a morte desaprendemos a recebê-la em nossas vidas. É nos hospitais onde a falta de jogo se faz mais presente. Os profissionais não estão preparados para lidar com a morte. Querem manter o paciente vivo a qualquer preço, mesmo que essa vida seja a expressão de ausência de qualidade e dignidade, situação essa chamada tecnicamente de “distanásia”. Em nome dessa mentalidade que recorta a vida como mera expressão de sinais vitais, vale “trancafiar” pacientes nos ambientes assépticos das UTIs, longe da presença das pessoas que se ama para que tenham uma morte no mais profundo desalento. Ao não querer jogar com a morte; ao não aprendermos a conviver com sua presença inexorável, amplificamos a dor e sofrimento que ela naturalmente produz. Creio que essa seja a mensagem principal do filme. Talvez as respostas definitivas sobre a morte nunca serão encontradas. Entretanto, a busca por elas faz parte da nossa condição desde o momento em que a morte deixou de ser uma mera impressão instintiva passando a ser o mais certo e objetivo conhecimento humano. Devemos jogar, opor-lhe certa resistência, devemos aprender com ela, mas também devemos ter clareza quando o jogo deve acabar para inclusive podermos nos sentir felizes pelo prazer de ter jogado.

Não contarei aqui o fim de “O Sétimo Selo” pois não quero retirar o prazer de quem ainda não o assistiu. Acima você pode vê-lo na íntegra a partir de um link no youtube. Até agora o meu jogo de xadrez com a morte parece ter sinalizado para algo muito importante em minha vida. A certeza de que iremos trilhar um caminho que nos leva a ela não pode retirar de nós a alegria de viver, o prazer de sentir a luz e o calor do sol. Quem sabe se as cores sombrias que pintamos a morte seja apenas um cosmético formado pelo medo. No fim das contas, morrer pode ser mais fácil que dançar. Basta que possamos desde já ir ensaiando os passos.



Fonte:






sábado, 6 de julho de 2024

COMUNICAÇÃO: O QUE SÃO REALMENTE FAKE NEWS?

 



INTRODUÇÃO DO BLOGGER

Como o assunto é complicado e de extremo interesse, seguem-se dois artigos retirados de sites voltados para estudantes e, portanto, bastante claros e didáticos. Você, leitor deste blog, pode ler apenas um deles ou ambos, assim como pode e deve, se o assunto lhe interessar, fazer novas pesquisas, para se informar sobre algo que está preocupando o mundo e, principalmente, colocando em cheque as democracias, as fake news.



FAKE NEWS: O QUE SÃO, COMO FUNCIONAM E COMO COMBATER


Nos últimos anos, o termo fake news ganhou muita atenção e esteve associado a diversas questões, como política, economia, migração, conflitos etc.

Em uma tradução literal, “fake news” significa “notícias falsas”, são conteúdos inverídicos e eventualmente sensacionalistas que passaram a preocupar o mundo inteiro.

Nesse texto, vamos entender exatamente o que são essas fake news e importantes questões sobre o tema, informações atualizadas para você ficar por dentro de tudo.

O que são fake news?

O termo Fake News significa notícia falsa. Chamamos de fake news toda reportagem, publicação em redes sociais, propagandas e comunicações de uma maneira geral que seja mentira, ou seja, que fale coisas que não são verdade.

Quando pensamos em uma notícia, é necessário ter em mente que é alguém contando uma história. Naturalmente, aquilo já passa pela visão e interpretação de alguém sobre algum dado ou informação.

Porém, muito além disso, essa pessoa pode fabricar esses dados ou inventar informações, e é aí que podemos definir melhor uma fake news.

Generalizando, podemos dizer que fake news é como se fosse contar uma mentira com algum objetivo, nada mais que uma calúnia, um boato ou uma difamação.

Então, isso significa que a fake news é muito mais antiga do que estou pensando? Exatamente!

Alguns historiadores, como Robert Darnton, comentam que esse hábito de espalhar fake news, notícias falsas, já existia há muito tempo.

Ele consegue até identificar um caso no século VI: Procópio de Cesárea era o historiador do Império Bizantino e foi responsável por escrever alguns textos sobre a história do imperador Justiniano, esses textos omitiam alguns escândalos do governo e amenizava inúmeras crises, tudo com interesses por trás.

Começava aí uma fake news que só foi descoberta após a morte de Procópio.

Então, como você pôde perceber, as fake news não são novidade e já existem desde que o mundo é mundo.

Entenda a origem do termo “fake news”

Sendo essa prática tão comum na história, é um pouco difícil delimitar um período histórico exato para o início da utilização do termo “fake news”..

Entretanto, podemos sinalizar que nos últimos anos a discussão sobre fake news tem ganhado força, principalmente associada ao conceito de pós-verdade (post-truth).

Pós-verdade, por sua vez, é um substantivo usado pela primeira vez pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, em 1992.

Foi empregado para se referir a uma “circunstância na qual fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais”.

Isso significa que você está mais suscetível a acreditar na história que seu familiar, amigo ou ídolo está contando do que aquela que estaria em um grande veículo de informação, e tem tudo a ver com o contexto das fake news.

Como funcionam as fake news?

Resumindo, fakes news existem há muito tempo e são uma prática comum que tem ganhado força na atualidade, relacionada ao conceito de pós-verdade.

Isso ocorre pois vivemos em uma sociedade em que a informação é uma das coisas mais importantes. O que se relaciona diretamente com o processo de globalização.

Atualmente, a internet e suas ferramentas possibilitaram que qualquer pessoa possa publicar ou dizer algo para milhares e milhões de pessoas..

Assim, a disseminação de notícias deixou de ser algo centralizado nos grandes portais de comunicação e passou a existir a partir de uma mensagem no WhatsApp, do textão no Facebook, da thread no Twitter.

É o que o historiador Leandro Karnal comentou sobre uma “seleção afetiva de identidade”.

Você tende a acreditar mais naquilo que seu amigo compartilhou do que em um grande portal de notícias com credibilidade.

Aliadas às redes sociais, as fake news e a pós-verdade ganham uma dimensão extra devido a outro fenômeno, denominado bolhas virtuais.

A tendência é que você siga pessoas com as quais tenha afinidade, que sejam parecidas com você em algum nível.

Quando a notícia passa a ser compartilhada por todo mundo daquele círculo, você entende como verdade, formando sua própria bolha.

Ter uma visão externa, uma opinião contrária passa a ser incomum ou taxada como absurdo, mesmo que existam dados que ajudem a comprovar essa visão oposta.

Exemplo de fake News: o caso Cambridge Analytica

Para entender sobre este caso polêmico de Fake news, precisamos te contextualizar sobre como funcionam as redes sociais: o tal do algorimo!

As redes sociais, para determinar o que deve ser exibido como propaganda ou sugestões de amigos e páginas, usam fórmulas e regras matemáticas.

Com isso, a partir do que você curte, segue, compartilha, as empresas possuem um inventário de dados sobre você. A partir dessa análise, é possível indicar, com mais assertividade, qual página ou publicação aquele perfil tende a gostar mais de ver, e assim as publicações vão aparecendo no feed.

Agora, você já imaginou usar esse grande inventário para compartilhar determinadas fake news?

Foi o que a Cambridge Analytica fez nos Estados Unidos e no Reino Unido durante as eleições de Donald Trump e a aprovação do Brexit.

A partir do inventário de dados de cada usuário, compartilhavam-se fake news específicas.

Se aquele perfil demonstrava uma preocupação com a economia, a empresa pagava para exibir publicações falsas sobre a taxa de desemprego nos Estados Unidos, ou compartilhava informações de que o Reino Unido perdia milhões de dólares por semana enquanto se mantinha na União Europeia.

Se a preocupação era sobre segurança nacional, a empresa comprava anúncios com fake news de que a candidata Hillary Clinton tinha alguma responsabilidade pela criação do Estado Islâmico.

E quando isso veio a tona foi a maior polêmica. É um dos grandes casos de fake news que foram expostos até hoje.

Os robôs e as fake news: o que uma coisa tem a ver com a outra?

Os robôs sempre foram usados de forma produtiva, mas com as fake news isso tem se tornado um problema.

Sabe aquele atendimento automático que temos por telefone ou aquelas dúvidas que são respondidas rapidamente em um chat de alguma empresa? É basicamente o trabalho de bot ou chat robô.

Porém, no mundo e no Brasil, esses bots têm sido usados para espalharem fake news sobre um candidato, sobre uma lei, sobre uma pessoa etc.

Um tablet com várias mensagens saindo dele escrito "fake news" em todas elas, ilustrando o disparo em massa de notícias falsas pro parte de robôs.

O aplicativo de troca de mensagens WhatsApp baniu pelo menos 1,5 milhão de contas de usuários brasileiros, em outubro de 2018, segundo notícia da Uol., por suspeita de disseminação de fake news.

E fica a pergunta: de onde sai o dinheiro para financiar essa máquina de robôs que compartilham fake news? Quem se beneficia com isso?

Exemplos e consequências das notícias falsas

Ao longo do texto, já divulgamos alguns casos de fake news, mas vamos citar outros para ter bastante referência para uma redação, por exemplo.

Esta reportagem da BBC cita três casos de fake news que geraram guerras e conflitos ao redor do mundo.

O primeiro foi de um menino crucificado na Ucrânia. Essa notícia foi usada como uma propaganda, ajudando a justificar a intervenção russa na Crimeia, que anexou esse território em 2014, que até então era da Ucrânia.

Um segundo caso foi sobre a Guerra do Golfo, no qual usaram a filha do embaixador do Kuwait nos Estados Unidos para fazer um depoimento falso sobre as atrocidades do governo iraniano de Saddam Hussein e convencer a opinião pública americana a participar da guerra.

E o terceiro caso foi a utilização de fotos falsas na crise humanitária envolvendo os rohingyas (mulçumanos).

Essa minoria muçulmana não é considerada cidadã de Mianmar e é perseguida pelo governo local e por budistas, migrando forçadamente para Bangladesh.

As fotos, que são relacionadas até a conflitos em outro continente, são usadas para acusar os rohingyas de serem violentos.

Mas esses são alguns exemplos recentes de fake news.

Se formos parar para pensar, até mesmo a “descoberta” do Brasil é repleta de notícias falsas, como a de que Pedro Álvares Cabral e suas embarcações teriam sido os primeiros europeus a chegarem em solo brasileiro, mesmo, anos antes, o navegador português Duarte Pacheco ter alcançado o litoral brasileiro, próximo aos estados do Amazonas e Maranhão.

Tipos de fake news

Já vimos que a questão sobre fake news é muito mais complicada que nossos familiares compartilhando corrente no WhatsApp.

Nesse sentido, a jornalista Claire Wardle conseguiu agrupar e dividir as fakes news em sete categorias.

Sátira ou paródia: não possui intenção de causar mal, mas tem potencial de enganar;

Falsa conexão: quando imagens, títulos e legendas dão falsas dicas do que realmente é o conteúdo;

Conteúdo enganoso: utilização enganosa de uma informação contra um assunto ou uma pessoa;

Falso contexto: conteúdo original compartilhado em um contexto falso;

Conteúdo impostor: quando afirmações falsas são atribuídas a fontes reais, geralmente pessoas;

Conteúdo manipulado: informação verdadeira manipulada para enganar;

Conteúdo fabricado: conteúdo completamente falso com o objetivo de gerar desinformação e causar algum mal.

Será que você consegue associar esses sete tipos de fake news aos exemplos que vimos no texto?

Como combater as fake news?

E aí, como combater algo tão complexo quanto as notícias falsas? Essa resposta também não é fácil.

Um primeiro ponto é começar a buscar fontes de notícias com maior credibilidade.

E isso passa geralmente por grandes portais de notícias, embora outros portais menores também estejam construindo um excelente jornalismo e possuam grande credibilidade.

Aqui, esbarra-se em uma outra discussão, de que esses portais estão defendendo alguém, participam de alguma conspiração…

Todo texto carrega uma subjetividade. Para isso, é necessário entender que todos esses portais de notícias possuem uma linha editorial, um pensamento econômico.

E isso não faz deles menos confiáveis. A dica é, sempre que ler o conteúdo, leia suas entrelinhas, além de procurar diversas fontes.

Generalizando, existe também aquele portal que vai te dar o furo de notícia e outro que vai fazer uma análise completa do conteúdo. Se foi noticiado algum furo, aguarde uma análise mais completa para não sair espalhando fake news.

E, por fim, confira sempre as agências de verificação. Alguns grandes jornais já incorporaram isso. Mas existem agências especializadas em checar fatos, como a Agência Lupa e o portal Aos Fatos.

Esses são excelentes mecanismos para verificar as notícias, garantindo uma maior credibilidade ao conteúdo que você lê.



Fonte atualizada em 12/12/2022




O QUE SÃO FAKE NEWS?





Fake News são notícias falsas divulgadas principalmente nas redes sociais. Os boatos têm informações irreais que apelam para o emocional do leitor/espectador.

Fake News espalham discursos de ódio e preconceitos, causando até mesmo problemas de saúde pública.

Fake News são notícias falsas publicadas por veículos de comunicação como se fossem informações reais. Esse tipo de texto, em sua maior parte, é feito e divulgado com o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa ou grupo (geralmente figuras públicas).

As Fake News têm um grande poder viral, isto é, espalham-se rapidamente. As informações falsas apelam para o emocional do leitor/espectador, fazendo com que as pessoas consumam o material “noticioso” sem confirmar se é verdade seu conteúdo.

O poder de persuasão das Fake News é maior em populações com menor escolaridade e que dependem das redes sociais para obter informações. No entanto, as notícias falsas também podem alcançar pessoas com mais estudo, já que o conteúdo está comumente ligado ao viés político.


Como surgiu o termo Fake News?

O termo Fake News ganhou força mundialmente em 2016, com a corrida presidencial dos Estados Unidos, época em que conteúdos falsos sobre a candidata Hillary Clinton foram compartilhados de forma intensa pelos eleitores de Donald Trump.

Apesar do recente uso do termo Fake News, o conceito desse tipo de conteúdo falso vem de séculos passados e não há uma data oficial de origem. A palavra “fake” também é relativamente nova no vocabulário, como afirma o Dicionário Merriam-Webster. Até o século XIX, os países de língua inglesa utilizavam o termo “false news” para denominar os boatos de grande circulação.

As Fakes News sempre estiveram presentes ao longo da história, o que mudou foi a nomenclatura, o meio utilizado para divulgação e o potencial de persuasão que o material falso adquiriu nos últimos anos.

Muito antes de o Jornalismo ser prejudicado pelas Fake News, escritores já propagavam falsas informações sobre seus desafetos por meio de comunicados e obras. Anos mais tarde, a propaganda tornou-se o veículo utilizado para espalhar dados distorcidos para a população, o que ganhou força no século XX.


Como funcionam as Fake News?

A produção e veiculação de Fake News constituem um verdadeiro mercado, conforme mostra o especial do jornal Correio Braziliense (para ter acesso à matéria completa, clique aqui). Esse universo é alimentado por pessoas de grande influência, geralmente políticos em campanha eleitoral, que contratam equipes especializadas nesse tipo de conteúdo viral. Essas equipes podem ser compostas por ex-jornalistas, publicitários, profissionais de marketing, profissionais da área de tecnologia e até mesmo policiais, que garantem a segurança da sede e dos equipamentos utilizados.

Alguns produtores de Fake News compram ilegalmente os endereços de e-mail e números de telefone celular de milhões de pessoas para “disparar” o conteúdo falso. Existe a preferência por contatos de líderes religiosos ou de movimentos políticos, já que eles repassam aos seus seguidores e pedem que a informação (tida como verdadeira) seja compartilhada.

Nas redes sociais, são criados perfis falsos (com fotos, dados pessoais e publicações diárias) que começam a interagir com outras pessoas para dar veracidade. Depois, os perfis começam a espalhar notícias e vídeos de sites falsos e incentivam seus contatos a fazerem o mesmo.

Os sites que contêm as Fake News, em sua maioria, também são parte da estratégia das equipes especializadas nesse serviço. Os responsáveis pelas informações virais compram domínios de páginas e adotam uma identidade visual semelhante à do alvo (partido político, por exemplo), começam com publicações por vezes verdadeiras e, assim, atraem seu público. Com o ganho de relevância nos sites de busca, os produtores de Fake News passam a publicar informações falsas como se fossem reais.

Os contratantes investem altos valores para que as notícias falsas sejam produzidas e veiculadas de forma sigilosa e sem deixar rastros para possíveis investigações. Existem gastos com alojamento temporário e com produtos como celulares pré-pagos e computadores, os quais são jogados fora após a produção das notícias.

Pagamentos que são feitos costumam sair de cartões recarregáveis para que não haja rastreamento. É comum a prática de utilizar o CPF das pessoas a serem difamadas para que os cartões possam ser cadastrados e utilizados. Segundo a matéria do Correio Braziliense, a tática faz com que a vítima que decida investigar a movimentação acabe chegando ao seu próprio documento, impedindo-a de continuar a procura pelos criminosos.

Para evitar a perseguição, os produtores mudam de local constantemente, assim como os profissionais de tecnologia da equipe alteram o IP (tipo de endereço do computador). O conteúdo produzido é guardado nas chamadas “nuvens”.

O alto investimento em tecnologia e a adoção de estratégias para evitar identificação de quem contrata o serviço e das pessoas que o fazem são medidas que dificultam o rastreamento dos disseminadores de Fake News. Além da dificuldade de localização dos culpados, a legislação brasileira não tem uma punição exclusiva para esse tipo de crime.

Uma história parece duvidosa? Desconfie e pesquise! As Fake News costumam ser sensacionalistas e apelam para a emoção do leitor.

Por que as pessoas compartilham fake news?

Segundo levantamento feito por veículos de comunicação, como a Folha de São Paulo, as páginas de Fake News têm maior participação dos usuários de redes sociais do que as de conteúdo jornalístico real. De 2017 a 2018, os veículos de comunicação tradicionais apresentaram queda de 17% em seu engajamento (interação), enquanto os propagadores de fake news tiveram um aumento de 61%.

Para legitimar as Fake News, as páginas que produzem e divulgam esse tipo de informação costumam misturar as publicações falsas com a reprodução de notícias verdadeiras de fontes confiáveis. Outro problema presente nas redes sociais são as chamadas sensacionalistas que induzem ao erro. Quem deseja espalhar um boato pode retirar de contexto um dado ou declaração para usar em seu título ou no texto de sua postagem.

Outra característica das Fake News é a utilização de montagens em vídeos e imagens. O usuário da internet é muito visual, por isso, uma foto manipulada ou fora de contexto pode ser facilmente divulgada como verdadeira.

Manipulação de imagens

A manipulação de imagens existe há muito tempo. Um exemplo é a intervenção em fotos oficiais do regime soviético, em meados do século XX. Uma foto de Stalin, em 1926, passou por duas alterações para excluir os inimigos políticos.


À esquerda, foto original de Stalin com os dirigentes. À direita, cartão-postal a partir da foto editada.
(Foto: Acervo de The David King Collection at Tate / BBC)

No Brasil, a manipulação de imagens intensificou-se em tempos de eleição. Em 2018, por exemplo, pessoas trocaram os números de candidatos em suas propagandas partidárias, induzindo o eleitor ao erro.

Consequências das Fake News

Divulgar Fake News é um ato muito perigoso. Compartilhar informações falsas, fotos e vídeos manipulados e publicações duvidosas pode trazer riscos para a saúde pública, incentivar o preconceito e resultar em mortes. Veja alguns exemplos:

• Linchamento de inocentes

Em 2014, o Brasil presenciou o caso de uma Fake News que teve um fim trágico. Notícia divulgada pelo UOL Notícias relatou que moradores de Guarujá/SP lincharam uma mulher até a morte por causa de um boato divulgado no Facebook. Ela foi acusada de sequestrar crianças para fazer rituais de magia negra, no entanto, a informação era falsa.

O uso das redes sociais para compartilhar notícias também perpetua a violência por causa das Fake News em outros países. A Índia é um cenário preocupante na divulgação de vídeos falsos pelo WhatsApp. Em 2018, cenas fictícias foram editadas e veiculadas como suposto sequestro de crianças em Rainpada, uma vila local na Índia (Para ler a notícia, clique aqui). Desesperados, os moradores começaram a perseguir os supostos sequestradores, resultando na morte de cinco pessoas.

• Questões de Saúde Pública

Movimentos antivacinação voltaram a crescer nos últimos anos. Algumas pessoas contrárias ao uso de vacinas disseminam notícias falsas e propagam suas visões de que vacinar a população faz mal, o que é um problema grave, pois a resistência à vacinação coloca em perigo a população.

Por causa do crescimento de casos de sarampo no Brasil em 2018, o Ministério da Saúde teve que promover campanhas de vacinação. Para combater as fake news sobre o assunto e incentivar a participação nas campanhas, o Ministério da Saúde (MS) precisou lançar propagandas e informativos de combate às fake news sobre vacinas em diferentes veículos de comunicação e nas redes sociais.


• Homofobia

Outro Ministério teve que entrar em cena para desmentir boatos. Em 2016, o Ministério da Educação (MEC) precisou ir a público esclarecer que não havia a circulação do falso “kit gay”nas escolas públicas do Brasil (para ler a declaração do MEC, clique aqui).

• Preconceito - Xenofobia

O discurso de ódio que toma conta das redes sociais resultou em ataques a acampamentos de imigrantes venezuelanos. Moradores de Paracaima, cidade de Roraima pela qual as pessoas vindas da Venezuela entram no Brasil, usaram paus, pedras e bombas caseiras para atacar os acampamentos.

Outro exemplo foi o de um comerciante que ficou ferido após ser assaltado por um grupo de venezuelanos. As fake news sobre o caso divulgaram que o comerciante não foi socorrido porque a prioridade era atender imigrantes venezuelanos. A informação causou revolta na população da cidade, que passou a atacar os imigrantes.

• Legitimação da Violência

Posições contrárias a uma ideologia política podem alimentar o discurso de ódio. Fake News sobre a vereadora Marielle Franco, por exemplo, assassinada em 2018, foram espalhadas pelas redes sociais. Entre os boatos, estava a suposta ligação da vítima com o tráfico. A Justiça do Rio de Janeiro entrou no caso e determinou a retirada do conteúdo do ar.

Marielle era uma vereadora ligada à luta pelos Direitos Humanos, em especial das mulheres e da comunidade negra do Rio de Janeiro. Ela denunciava políticos e policiais por abusos de poder e outras violações e, por isso, criou inimizades com várias figuras públicas.


Como combater as Fake News?

O combate às Fake News é algo difícil. Os mecanismos de produção e veiculação das falsas informações são muito eficientes e escondem a identidade dos criminosos.

Para o usuário da internet, o importante é conseguir identificar uma notícia falsa ou sensacionalista e não compartilhar conteúdo duvidoso. Agências de jornalismo especializado são uma ferramenta útil para saber se um conteúdo é Fake News ou não.

A Agência Lupa é uma criação da Revista Piauí com a Fundação Getúlio Vargas e com a rede Um Brasil. Lançada em 2015, o site analisa conteúdo nacional e internacional e classifica-os em: verdadeiro; verdadeiro, mas…; ainda é cedo para dizer; exagerado; contraditório; insustentável; falso e de olho.

O Boatos.org é um site formado por vários jornalistas brasileiros que investigam conteúdos que circulam nas redes e informam aos leitores se são verdadeiros ou falsos.

Outra agência especializada em desvendar Fake News é “Aos Fatos”. Seus criadores fazem parte de uma rede internacional de investigadores e trabalham com a análise dos assuntos mais populares da internet. O site possui uma parceria com o Facebook para ajudar os usuários do Messenger (serviço de mensagens instantâneas da empresa) na navegação e identificação da veracidade dos posts. As notícias são definidas pela equipe como verdadeiras, imprecisas, exageradas, contraditórias, insustentáveis e falsas.



Fonte: escrito por Lorraine Vilela Campos