Tive a grata satisfação de participar do “Cineterapia”, um projeto implementado pelo Centro Acadêmico do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). O objetivo é suscitar discussões de caráter psicológico a partir da linguagem do cinema. Nossa tarefa foi comentar o filme “O Sétimo Selo” (1956) do diretor sueco Ingmar Bergman a luz da Tanatologia. (acesse AQUI a página do “Cineterapia” no facebook)
Essa foi a sexta vez que assisti a este filme. A cada nova oportunidade percebo novas nuances. Digamos que dessa vez senti o filme mais eloquente em seu personagem principal: a Morte! Ter 50 anos de idade nos coloca tecnicamente além do que se convenciona chamar de “meia idade”, afinal, são poucos os que chegam aos 100 anos. Digamos que o “ofício” de tanatólogo e o tempo nos deixa cada vez mais sensível às mensagens da finitude.
“O Sétimo selo”, produzido a partir de uma peça de teatro (“O Retábulo da Peste”), permite leituras diversas. Uma delas poderia nos fazer cair na tentação de reduzir o filme a uma mera expressão da individualidade do seu diretor, como projeção de seus conflitos, dúvidas e anseios. Óbvio dizer que isso seria inerente a qualquer manifestação artística. Ao olharmos uma pintura ou ouvirmos uma música, bastará algumas informações biográficas do artista para estabelecermos os elos entre a obra e seu autor. No entanto, o autor não é único na sua produção na medida em que as individualidades são também sínteses complexas de sua época em amalgama com a herança histórica do gênero humano.
Assim, optei por outro caminho. Vejo em “O Sétimo Selo” uma espécie de alegoria do homem diante da morte. Cada um dos seus personagens parece encarnar atitudes diante da morte e do morrer correlatas a grupos, sociedades, culturas, filosofias e civilizações inteiras. O cenário onde a textura do enredo se constrói é a grande “Peste Negra” que assolou a Europa de 1348 a 1352. Cifras da época permitem aos historiadores de hoje calcularem que a pandemia ceifou a vida de 30% a 40% de uma população presumível de oitenta milhões de pessoas. É nesse cenário de absoluto medo e terror que a morte se apresenta, não só como a certeza mais absoluta como também um elemento que se toca, vê e se respira o tempo todo! Não entraremos aqui em mais detalhes históricos sobre a pandemia. Basta imaginar seu caráter de letalidade associado a incapacidade do conhecimento humano em se lidar com seus aspectos sanitários pois não existia terapêutica que fosse eficaz. Da noite para o dia, comunidades inteiras poderiam desaparecer, grupos entrelaçados por séculos de valores culturais tinham sua memória destroçada.
É nesse cenário em que temos Antonius Blok um cavaleiro medieval e Jons, seu escudeiro. Ambos estão retornando das cruzadas para seus lares. Pensam ter fugido do inferno da guerra mas se deparam agora com o inferno da peste. Na relação entre cavaleiro e escudeiro se apresenta a dicotomia clássica da relação do home com a morte, o enfrentamento de concepções de cunho metafísico-espiritual versus concepções de cunho materialista. O cavaleiro, por vezes preso a dúvidas, tenta reafirmar a crença na possibilidade da vida após a morte. Para isso prende-se na crença em Deus mesmo que em luta diante da constatação que esse Deus parece não escutá-lo. Já o escudeiro aponta na direção contrária. Quase como um Nietzsche medieval, não vê finalidade alguma na vida. Acha sem sentido a discussão de um sentido para ela. A morte não apresenta questão alguma pois ela afirma apenas certeza do nada. O que temos na verdade é a vida como um fluxo de ações na existência. A morte nos levaria às trevas do não sentir. Portanto, vamos aproveitar tudo o que a vida pode oferecer.
Em meio as observações do cavaleiro e do escudeiro, temos a trupe de teatro mambembe, uma aparente metáfora de Bergman sobre a necessidade da arte frente ao desalento produzido pela idéia da morte, a manifestação artística como potência de vida. Essa impressão é claramente reforçada pela associação da maioria das cenas onde os atores aparecem com o sexo, a luz, a alegria, a festa. Chama a atenção aqui a figura de Jof o líder dos atores. Ele expressa a capacidade de ter visões que são o tempo todo questionadas pela esposa. Aqui nos deparamos com a necessidade da experiência religiosa diante da morte. Uma coisa parece estar imbricada na outra. Caso realmente a vida seja algo sem finalidade, um dos desafios da existência seria a produção dessa finalidade. A experiência religiosa apresenta-se assim como um dos antídotos ao “veneno” da consciência da morte. Mas ela é tão intensa para algumas pessoas que não se pode mais ter certeza dos limites que separam a experiência religiosa do que chamamos de realidade. As visões expressam exatamente isso. Algo que é visto mas que não é percebido por todos, algo que expressa aspectos constitutivos do real em seus componentes mas que o nega ao mesmo tempo.
Existe uma cena clássica no filme que, a meu ver, parece trazer uma intensa reflexão. Trata-se do momento em que o cavaleiro se encontra com a morte. Ela está pronta para levá-lo. O cavaleiro diz que está preparado mas que sente medo. Tenta então escapar de sua sina propondo uma partida de xadrez com a morte. Caso ganhe, a morte o poupará, caso perca, será levado por ela. De pronto a morte aceita o desafio. Assim, no restante do filme, a cena do jogo irá acontecer algumas vezes. Em alguns momentos parece que o cavaleiro irá vencer. Os dois chegam a construir uma relação quase amistosa. A morte se apresenta de uma maneira essencialmente humana embora seu rosto pintado de branco em meio a uma roupa preta que cobre o corpo todo lhe dê a semelhança de um palhaço, um contraponto estético frente às ideias clássicas da morte como anjo aterrador ou um ceifeiro com roupas andrajosas e o corpo em decomposição. O cavaleiro criva a morte com perguntas sobre o sentido da vida. Para seu desalento, a morte parece não ter resposta alguma que transcenda sua tarefa. Maravilhosa a cena em que o cavaleiro pensa estar conversando com um padre no confessionário. Revela estar jogando xadrez contra a morte e compartilha o estratagema que o levará à vitória para logo a seguir perceber que o padre era a própria morte disfarçada. Não há como escapar de tão exímia jogadora. Óbvio que dessas escaramuças a morte sairá vencedora.
Hoje em dia não estamos “jogando” com a morte, não a convidamos para o jogo de xadrez. Caso você tenha aprendido a jogar xadrez com um mestre sabe que vencê-lo é praticamente impossível. Entretanto, ao jogar contra ele, seu próprio jogo melhora em estratégia, você se torna um jogador melhor. Ao nos negarmos a jogar contra a morte não aprendemos a viver com ela que, como nos diz no filme, tem estado a nossa espera desde o dia em que nascemos. Exploremos mais essa metáfora. A maioria de nós foi ensinada a produzir uma arte de fugir da morte. Isso está expresso por mensagens mais ou menos sutis no cotidiano. Falar sobre a morte num sentido existencial tornou-se um gesto de “mau gosto”, os amigos tentam logo reconduzir a conversa para assuntos que digam respeito a “vida”. Quando vamos aos velórios em ambientações mais requintadas, voltadas às classes médias urbanas, nota-se que as sinalizações da morte são apagadas, restando ao cadáver uma sala discreta com o corpo coberto de flores só nos deixando perceber o rosto que pode ter sido trabalhado com necromaquiagem para negar a aparência da morte.
Mas existem sinais mais dramáticos. Quando não queremos jogar xadrez com a morte desaprendemos a recebê-la em nossas vidas. É nos hospitais onde a falta de jogo se faz mais presente. Os profissionais não estão preparados para lidar com a morte. Querem manter o paciente vivo a qualquer preço, mesmo que essa vida seja a expressão de ausência de qualidade e dignidade, situação essa chamada tecnicamente de “distanásia”. Em nome dessa mentalidade que recorta a vida como mera expressão de sinais vitais, vale “trancafiar” pacientes nos ambientes assépticos das UTIs, longe da presença das pessoas que se ama para que tenham uma morte no mais profundo desalento. Ao não querer jogar com a morte; ao não aprendermos a conviver com sua presença inexorável, amplificamos a dor e sofrimento que ela naturalmente produz. Creio que essa seja a mensagem principal do filme. Talvez as respostas definitivas sobre a morte nunca serão encontradas. Entretanto, a busca por elas faz parte da nossa condição desde o momento em que a morte deixou de ser uma mera impressão instintiva passando a ser o mais certo e objetivo conhecimento humano. Devemos jogar, opor-lhe certa resistência, devemos aprender com ela, mas também devemos ter clareza quando o jogo deve acabar para inclusive podermos nos sentir felizes pelo prazer de ter jogado.
Não contarei aqui o fim de “O Sétimo Selo” pois não quero retirar o prazer de quem ainda não o assistiu. Acima você pode vê-lo na íntegra a partir de um link no youtube. Até agora o meu jogo de xadrez com a morte parece ter sinalizado para algo muito importante em minha vida. A certeza de que iremos trilhar um caminho que nos leva a ela não pode retirar de nós a alegria de viver, o prazer de sentir a luz e o calor do sol. Quem sabe se as cores sombrias que pintamos a morte seja apenas um cosmético formado pelo medo. No fim das contas, morrer pode ser mais fácil que dançar. Basta que possamos desde já ir ensaiando os passos.
Fonte:
Autor: Erasmo Ruiz
14/05/2013
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