sábado, 27 de julho de 2024

ERUDIÇÃO: PADRE KIRCHER E AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

 


Padre Athanasius Kircher (1602-1680)

Fazia um pouco de frio em Roma no dia em que padre Kircher morreu, aos 78 anos de idade, em 27 de novembro de 1680. O sol praticamente não apareceu, e um vento frio fazia a sensação térmica piorar. No entanto, a vida seguia normal. A missa foi cantada em todas as igrejas da Cidade Eterna no horário habitual. O comércio abriu normalmente. Enquanto isso, as pessoas circularam pela rua para seus negócios, compras e amores.

Fazia já alguns anos que padre Athanasius Kircher andava doente. Surdo, sem enxergar direito e com lapsos grandes de memória, ele raramente saía de sua cela. No entanto, ainda produzia: em carta daquele mesmo mês de novembro, provavelmente ditada por ele, padre Kircher se desculpava com seu interlocutor por causa de suas “mãos trêmulas”.

Com sua morte, desapareceu de cena uma das personalidades da cultura mais interessantes do século XVII. Isso não é pouco, num século que começa com Giordano Bruno, Galileu Galilei, René Descartes, Baruch Spinoza e vai até Isaac Newton, entre tantos outros.

SABIA TUDO E NÃO ENTENDEU NADA?

Padre Kircher comandou, a partir da Biblioteca do Vaticano, que ele dirigiu por mais de cinquenta anos, um dos maiores projetos culturais de que se tem notícia. Seus mais de quarenta livros e seus inventos abrangem praticamente todas as esferas do conhecimento, desde a Linguística até a Geologia, a Física e a Química. Ele foi, segundo a historiadora Paula Findlein, sua biógrafa, “o último homem que sabia de tudo” (deixe Jeff Bezos mais rico aqui).


Padre Kircher recebendo visitantes na Biblioteca Vaticana

Claro que tal ambição tem seu preço. Conhecer tudo significa conhecer um pouco de tudo. Apesar de ser um erudito no mais amplo sentido da palavra, Kircher cometia gafes e frequentemente fazia falsas interpretações. Quando leu o livro que padre Kircher escreveu tentando decifrar os hieróglifos egípcios, o também polímata Gotfried Leibniz (1646-1716) escreveu: “ele [Kircher] não entendeu nada!”.

Da mesma forma, o erudito inglês Johann Burkhardt Mencke (1674-1732) escreveu “De Charlataneria eruditorum” [A charlatanice dos eruditos], no qual faz uma imagem devastadora de Kircher. Sua caricatura de um charlatão escrevendo coisas estúpidas e sem sentido foi a imagem que ficou do Jesuíta para a posteridade.

No entanto, passado tanto tempo, cabe perguntar: quem foi padre Kircher? Qual o seu alcance e seu significado? Quais seus pressupostos e qual sua visão de mundo? Em anos recentes, apareceram uma série de livros e artigos revisitando e colocando sua vida e sua obra em perspectiva histórica. Um novo Kircher surgiu.


CONHECIMENTO SEM LIMITES

Athanasius Kircher nasceu em Geisa, na Alemanha, em 1602. Era o último de nove filhos de uma família burguesa escolarizada. Segundo sua autobiografia, o jovem Athanasius era um “estúpido propenso a acidentes”. Fez seus estudos no Colégio jesuíta de Paderborn, de onde quase foi expulso por sua saúde fraca. Quando finalmente se formou, em 1627, foi admitido na prestigiosa Companhia de Jesus. Além disso, foi ser professor de grego e siríaco em Heilingenstadt, onde seu pai também havia lecionado.

Fascinado pelo Oriente, Kircher pediu para ser enviado como missionário para a China, mas foi recusado pela sua Ordem. Logo a seguir, ele teria que se mudar: a Alemanha estava sofrendo com a Guerra dos Trinta Anos, entre protestantes e católicos. O católico e jesuíta Kircher se refugiou em Avignon na França em 1632, fugindo das tropas protestantes do Rei Gustavo Adolfo da Suécia.

De lá, Kircher foi para Roma, onde ficou até o fim de sua vida. Na Cidade Eterna, construiu uma reputação de homem com muitos segredos e possuidor de textos secretos. Muitos não acreditavam nele, mas o padre Kircher parecia não se importar com isso. Passou a estudar, escrever e fabricar instrumentos os mais diversos.

Trabalhando na Biblioteca do Vaticano, padre Kircher foi logo conquistando seu espaço. Seus livros começaram a ficar famosos, e sua reputação ia aumentando. Padre Kircher escreveu sobre os hieróglifos egípcios, sobre o magnetismo, sobre ótica, sobre os subterrâneos terrestres, sobre a história de Roma. Sobre quase tudo.

É claro que muitos perceberam seus limites. Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637), filosofo e botânico francês e um dos eruditos mais influentes da época, logo entendeu que os talentos de Kircher eram limitados. No entanto, percebeu seu entusiasmo e energia e apoiou várias das iniciativas do jovem Jesuíta.

KIRCHER DESCE AO INTERIOR DA TERRA

Um dos livros mais famosos de Kircher foi o Mundus Subterraneus, de 1665. Nele, padre Kircher expõe sua visão de mundo, fortemente marcada pelo Neoplatonismo e pelo Hermetismo. Para ele, a Terra era uma só, um imenso organismo vivo, governada pelos elementos fogo e água.

O fogo é representando pelo sol, pelo enxofre e por Hermes Trismegisto (o três vezes grande). É o fogo que vemos nos vulcões que Kircher representou como sendo um todo interconectado. Para entender os vulcões, Kircher desceu á cratera do Vesúvio logo após uma erupção em 1638. Também realizou viagens de estudo para Creta, Malta e Sicília,

AS MONTANHAS DA LUA

A água, por sua vez, é representada pelos oceanos, rios e fontes, e também pela Lua. Estudando a origem dos grandes rios do planeta, Kircher conclui que estes estavam interconectados com as grandes cadeias de montanhas. O Nilo, o Danúbio, o Ganges e o Amazonas seriam formados por grandes lagos subterrâneos, localizados justamente nas grandes cadeias de montanhas. O Nilo nasceria no coração da África nas “Montanhas da Lua“. As tais montanhas não existiam, mas é uma prova de que Kircher sabia se aproveitar de relatos de viajantes e construir o seu próprio. No século XIX não poucos viajantes europeus percorreram as nascentes do Nilo atrás destas míticas montanhas. Para Kircher, as fontes eram a conexão do interior com o exterior da Terra pela água. Para ele, a união do sol masculino com a lua feminina realizada na terra dá ao planeta seu caráter “neutro”.



As nascentes do Amazonas em uma caverna subterrânea sob os Andes

Esta visão “holística” do planeta é uma das características da visão neoplatônica de Kircher. O resultado é esta aparente confusão barroca, que une o microcosmo e o macrocosmo, como se um fosse a extensão do outro. Para tanto, Kircher usa da metáfora, da alegoria e do simbolismo para mostrar os sinais da glória de Deus na natureza.

AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

A paleontologia de Kircher é uma das mais interessantes facetas de sua obra. Em seus livros, contudo, Kircher distingue claramente os fósseis que “são produtos de petrificação de animais e conchas” de outros que são símbolos e alegorias. No primeiro time, estão as coquinas representadas no Mundus Subterraneus (figura abaixo). No outro, as pedras que reproduzem a face de uma garça, uma coruja, ou Nossa Senhora com o menino Jesus. Para Kircher, tais representação não tinham nenhuma causalidade. Eram somente “lusus naturae”, ou seja, brincadeiras da natureza.


As coquinas de Padre Kircher: prova de origem inorgânica dos fosseis

Entretanto, uma leitura apressada da obra de Kircher sugere para muitos somente um lunático (e ainda por cima Jesuíta!) que enxerga figuras absurdas impressas nas rochas. Da mesma forma outros pensavam no padre Jesuíta como um fanático reacionário que é contra a “visão correta” dos fósseis como restos de animais tal como conhecemos hoje. Entretanto, nenhuma destas visões enxerga Kircher como ele deve ter sido.

Kircher sabia que havia fósseis formados por restos de animais. Durante suas viagens à Sicília, ele encontrou e representou no Mundus Subterraneus animais com aparência moderna achados nas rochas.

As outras indicações de “pedras figuradas” representam, para Kircher, uma interconexão entre micro e macrocosmo. Desta forma, dentro de sua visão de mundo, estas pedras eram as provas da sabedoria de Deus. Para ele, a discussão sobre a origem orgânica ou inorgânica dos fosseis e das rochas que as continham não estava posta. A sua “pira” era outra.


As pedras “figuradas”, com significados simbólicos: garças, pombas, corujas e outras figuras

FUJA DA INQUISIÇÃO, PADRE KIRCHER!

Entretanto, a visão de mundo de Padre Kircher era posta constantemente em cheque pelos censores da Companhia de Jesus. Não era pra menos. Por causa de suas ideias neoplatônicas (e por sua defesa do Sistema Copernicano) Giordano Bruno havia morrido na fogueira em 1600, dois anos antes de Kircher nascer. Quando o jovem Kircher chegou à Itália, em 1632, o processo contra Galileu ainda corria, tendo grande publicidade.

Um padre que em seus livros citava Hermes Trismegisto, fazia experimentos alquímicos e construía instrumentos estranhos deve ter chamado atenção dos censores, como realmente chamou. Contudo, Kircher soube contornar e aparar as arestas entre suas ideias do mundo natural com as demandas da inquisição. Não deve ter sido fácil.

A VIDA QUE SEGUE

Quando padre Kircher morreu, o dia estava frio e cinzento em Roma, mas não por causa dele. Enquanto isso, durante os mais de cinquenta anos que ele permaneceu ali na frente da Biblioteca do Vaticano, o mundo havia mudado muito. Agora, graças a uma notável rede de sábios e eruditos, a ciência moderna estava em franca expansão.

Neste período, o surgimento de novas sociedades cientificas, os primeiros journals, as correspondências de filósofos naturais por toda a Europa (e mesmo na América) haviam mudado o ponto da discussão.

Antes de tudo, o mundo quando Padre Kircher morreu era mais racionalista e mecanicista, baseado mais nas ideias de Descartes e Newton, entre tantos outros. Para isso, a nova ciência que surgia prescindiria de ideia de um Deus ou de qualquer explicação metafisica para fazer a natureza funcionar. Com isso, não havia mais espaço para o sobrenatural, para o maravilhoso e para o espanto. Sobretudo, não havia mais espaço para o padre Kircher.

Fazia frio e ventava no dia em que padre Kircher morreu, mas não por causa de alguma vontade divina. Fazia frio e chovia por causa das correntes de ar atmosférico sobre o Mediterrâneo. Enquanto isso, os pássaros no outono migravam para o sul. As placas tectônicas seguiam se movimentando, podendo provocar terremotos ou erupções vulcânicas. As fontes seguiriam jorrando água.

No dia seguinte, uma missa foi rezada pela alma de um padre velhinho que morrera naquela noite fria.



SUGESTOES DE LEITURA

Findlen, P. (Ed.). (2004). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. Routledge.

Gould, S. J. (2004). Father Athanasius on the isthmus of a middle state. Athanasius Kircher: The last man who knew everything, 201-237.



Autor: Jefferson Picanço


23 de março de 2018

Sobre Jefferson Picanço

Possui graduação em Geologia Pela Universidade Federal do Paraná (1989), mestrado (1994) e doutorado (2000) em Geociências (Geoquímica e Geotectônica) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor do Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas. Entre os seus atuais interesses de pesquisa estão Gestão de Desastres, Cartografia Geotécnica e História das Ciências Naturais. Ver todos posts de Jefferson Picanço →

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