sexta-feira, 30 de agosto de 2024

USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE SIGMUND FREUD

 


“A beleza não tem uma utilidade óbvia, nem existe para ela uma necessidade cultural. Contudo, sem ela, a civilização não poderia existir”.

(Sigmund Freud, Civilisation, Society and Religion; apud Zygmunt Bauman, in A cultura no mundo líquido moderno)

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

ARTES PLÁSTICAS: MARIA BASHKIRTSEVA

 

O DIÁRIO DE MARIA BASHKIRTSEVA


Maria Konstantinovna Bashkirtseva (1858-84), filha de uma família da nobreza russa, nasceu na Ucrânia, mas passou grande parte da sua breve vida a viajar pela Europa. Estudou pintura em Paris, onde produziu uma obra notável, quase inteiramente destruída pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Sob o pseudónimo Pauline Orrel, também escreveu para o jornal feminista La Citoyenne. Mas foram as suas cartas, e principalmente o diário que manteve desde os 13 anos, que a tornaram uma figura única no seu tempo, levando Jon Savage, em Teenage, a considerá-la pioneira da emergência de uma nova consciência do lugar e do papel da jovem. Escreve ela no Diário: «Incendiar todas as coisas, exasperar-me, chorar, sofrer todos os dias, mas viver, e viver!». E mais adiante: «Estou cansada da minha própria obscuridade. (…) Definho na escuridão. O sol, o sol, o sol!» Maria insurgiu-se de forma consciente e solitária contra a vitoriosa ordem burguesa e a poderosa definição arquetípica de uma feminilidade assente na auto repressão, na resignação e na vida confinada ao espaço doméstico. Hoje quase esquecida, terá sido uma das primeiras a fazê-lo.

Fonte:

 

 

(the meeting,1884)


(self-portrait, 1884)


(myrrh bearing women, 1883)


(the-umbrella,1883)


 (self portrait with palette,1880)


 (in studio)

terça-feira, 27 de agosto de 2024

CIÊNCIA: EVOLUÇÃO HUMANA CHEGOU AO FIM?

 EVOLUÇÃO HUMANA "CHEGOU AO FIM", AFIRMA BIÓLOGO DARWINISTA






Quando "A Origem das Espécies" de Darwin foi publicado em 1859, não demorou para que teólogos sensíveis, como o cardeal John Henry Newman, aceitassem a evolução como parte da providência divina. Mas até hoje o mundo cristão continua dividido entre os criacionistas que leem o Gênesis literalmente, e os que o veem de forma não literal, como um mito ou um poema. Enquanto os criacionistas leem a Bíblia como um texto cosmológico, outros tratam a evolução como uma teoria para tudo.

O darwinista Steve Jones, eminente biólogo e escritor talentoso, é professor de genética e chefe do departamento de biologia do University College, em Londres. Conversei com ele recentemente em sua sala no Laboratório Galton, atrás da estação Euston, para falar sobre o darwinismo.

Para celebrar o bicentenário de Darwin, Jones publicou um novo livro, "Darwin's Island" ["A Ilha de Darwin"], que examina as pesquisas pouco conhecidas de Darwin sobre a flora e a fauna britânicas. Jones declarou recentemente, de forma provocativa, que a evolução humana "chegou ao fim". E agora, nessa entrevista, volta a afirmá-lo.

"É sério isso?", perguntei.

"Veja, no mundo desenvolvido, os homens em média têm filhos mais cedo do que antigamente. Isso significa que há menos chance de que o esperma sofra mutações que poderiam levar a uma mudança evolucionária".

Não me convenci. Afinal, há apenas 50 anos, a média de expectativa de vida era bem menor, então é claro que em média os homens tinham filhos mais cedo. Mas acho que o que John quer dizer é que o homem de hoje tem um período de procriação curto, que vai apenas do final dos 20 anos até antes dos 40. No passado, entretanto, a maioria dos homens (principalmente os mais bem sucedidos) teriam filhos ininterruptamente, desde a adolescência até os 50 ou 60 anos. Então, apesar de ter aumentado a média de idade com a qual o homem tem o seu primeiro filho, a média da faixa etária em que eles têm filhos é menor.

Ele acrescenta: "a evolução também requer que populações isoladas possam acumular adaptações, como nas ilhas Galápagos. O mundo moderno, com suas viagens de avião, remédios e proteção contra as intempéries, faz com que seja muito pouco provável encontrar mutações significativas prosperando num habitat isolado".

"A força motriz da evolução humana é o homem", continua Jones. "Os óvulos das mulheres são produzidos antes do nascimento, e na vida adulta o número de divisões celulares que podem desencadear uma mutação bem sucedida está em torno de 20, desde o óvulo que lhe deu origem até o óvulo que produzirá seus filhos. Mas o esperma de um pai de 28 anos de idade passa por 300 divisões celulares desde o esperma que lhe deu origem até o esperma que ele passa adiante. Em um homem de 50 anos, são 2 mil divisões celulares. Assim, são os pais mais velhos que levam a evolução humana adiante através das mutações genéticas. Mas nos países desenvolvidos, a maioria dos homens não se reproduz mais a partir dos trinta e poucos anos."

E quanto às mutações resultantes de testes nucleares e Chernobyl?

"Claro, o DNA pode ser afetado por influências do ambiente. Mas apenas 0,2% da exposição à radiação é produzida pelo homem; a maior parte vem do radônio no solo e nas rochas".

Jones, entretanto, concorda que ainda é possível uma espécie de microevolução - por exemplo, na disseminação de genes resistentes ao HIV/Aids. "Eventualmente os sobreviventes passarão seus genes resistentes para a próxima geração, criando uma população em geral resistente. Mas isso não assinala uma mudança significativa na espécie humana".

E quanto à ideia de que os humanos podem se tornar mais ou menos inteligentes?

"Foi Francis Galton, um dos primeiros geneticistas", disse Jones, "que veio com a ideia de que os seres humanos estavam destinados a emburrecer porque as pessoas inteligentes têm menos filhos, enquanto as burras e irresponsáveis se reproduzem com mais rapidez". Contra Galton, Jones cita o "efeito Flynn" - o aumento do QI médio no mundo desenvolvido durante os últimos 50 anos, que recebe esse nome por causa do cientista político James R. Flynn.

Flynn argumentou que esse "efeito" não demonstra um aumento genético na inteligência - mas que se deve a um desvio nos testes de QI, que privilegiam um tipo de raciocínio abstrato que melhorou durante o século 20 por causa da educação e da tecnologia. Antigamente, as pessoas tinham o mesmo poder cerebral, mas menos experiência com o raciocínio abstrato.

Jones também não se impressiona com a possibilidade de a engenharia genética deixar uma marca na evolução humana. Ele admite que poderá haver algumas melhorias superficiais na capacidade humana, com drogas como a ritalina para a concentração, ou provigil para combater a fatiga. Mas segundo ele essas são mudanças superficiais e não-genéticas.

Jones também insiste que os habitats isolados não continuarão suficientemente isolados para permitir mutações. Ele chama isso de "a grande coalescência global", a forma pela qual os seres humanos escaparam das "leis impiedosas de vida e morte" da evolução. E continua: "diferenças herdadas na capacidade de superar resfriados, fome, deficiência de vitaminas ou doenças não movem mais a máquina da evolução. As pessoas morrem por causa disso, mas quando estão velhas e a evolução não as percebe mais".

Então essas melhoras não indicam um avanço evolucionário?

"Darwin argumentava que a evolução não tem uma tendência inerente para melhorar ou piorar as coisas. De fato, é mais provável ter alguma surpresa ruim virando a esquina. Um dia poderemos simplesmente falhar em nossa luta pela sobrevivência".

Jones explica que uma das grandes divisões na compreensão da evolução é entre as noções de propósito e não-propósito. Um exemplo do problema, continua, é encontrado na ideia de uma asa ou um olho pela metade - normalmente discutida pelos defensores do "desenho inteligente" [ou criacionistas]. Segundo eles, como alguma coisa pela metade não tem nenhuma vantagem evolutiva, ela deve de certa forma ter sua função final codificada dentro de si antes de começar sua jornada. A resposta de Jones para essas anomalias admite o mistério da falta de fósseis que evidenciem transições graduais, por exemplo, de uma situação sem asas, para meia asa (sem nenhuma vantagem evolucionária), para uma asa totalmente operacional.

Essa aparente falha na teoria evolucionária encorajou a hipótese do "desenho inteligente" de propensões inerentes para um desenho mais complexo. "Há muitas pessoas que estão felizes em acreditar em parte da história da evolução", diz Jones, "mas argumentam que Deus fornece um ímpeto de propósito por trás de tudo".

"Eu não consigo entender a ideia de que tudo tem um 'significado' na evolução", diz Jones. Ainda assim é difícil, senão impossível, acredito, até mesmo para os biólogos mais reducionistas escreverem de forma acessível sobre evolução sem usarem em certo grau o discurso do propósito antropomórfico - até mesmo em termos que parecem neutros como "vantagens", ou "sobrevivência do mais forte", "adaptação".

Enquanto cientista altamente literário, Jones se diz consciente, e talvez até culpado, da justaposição entre a metáfora e a ciência. O próprio Darwin, ele admite, era dado a metáforas imaginativas; seu companheiro constante no Beagle foi uma cópia de "Paraíso Perdido" [obra poética do escritor John Milton], e um dos aspectos mais excepcionais de "A Origem das Espécies" é sua capacidade de misturar metáfora e ciência, criando um efeito belíssimo.

Além do simples deleite com a descrição natural, o entusiasmo de Jones com os estudos de Darwin sobre os crustáceos e outras minúcias britânicas parte de sua especialização acadêmica, a genética.

"O DNA, assim como os corpos que ele constrói", diz Jones, com os olhos iluminados, "é baseado numa série de variações numa estrutura. Conforme um óvulo amadurece, órgãos complexos - olhos, ouvidos, mãos e cérebros - são formados a partir de elementos que só poderão ser distinguidos no embrião". Em momentos como esse, trazendo a biologia do desenvolvimento para a vida, a conversa com Jones se parece mais com as passagens líricas de seus livros - hinos à beleza, sutileza, e o potencial das criações vivas em seu progresso "da fertilização ao túmulo".

A ligação entre a seleção natural e o DNA estava esperando para acontecer; nesse sentido Jones e seus colegas biólogos são os herdeiros diretos de Darwin. "A seleção natural", diz Jones, "deixa suas pegadas na dupla hélice de muitas formas. Grandes trechos de DNA homogêneo de ambos os lados dos genes europeus para cabelo loiro e digestão de leite mostram que as variações benéficas arrastaram junto suas vizinhas à medida que passaram pela população durante os últimos milhares de anos".

Darwin aparentemente queria acrescentar um capítulo sobre seres humanos em seu trabalho sobre a origem dos animais de fazenda. Esse capítulo está sendo escrito agora com a ajuda dos geneticistas modernos. Muitas das mudanças físicas na linha humana desde que ela surgiu lembram as que aconteceram nos animais domésticos, admite Jones.

E quanto à inteligência humana, que nos permite dar continuidade à visão de Darwin no campo da genética, Jones diz: "nossos cérebros, sozinhos, não diminuíram".



Fontes:

Autor: John Cornwell 

John Cornwell é diretor do Projeto de Ciência e Dimensão Humana no Jesus College, Cambridge

Tradução: Eloise De Vylder


15/03/2009



sábado, 24 de agosto de 2024

USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE HEINRICH HEINE


 

      [...] Onde queimam livros, acabam queimando homens [...] 

– Heinrich Heine, Almansor – 1821; in História universal da destruição de livros – das tábuas sumérias à guerra do Iraque, Fernando Báez; trad. Léo Schlafman.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

SOCIEDADE: POR QUE É TÃO DIFÍCIL A CONVIVÊNCIA HUMANA?

 O QUE É DILEMA DO OURIÇO, PARÁBOLA DO FILÓSOFO SCHOPENHAUER SOBRE COMPLEXIDADE DAS RELAÇÕES HUMANAS




Os porcos-espinhos parecem viver sem enfrentar problemas... até a chegada do inverno


"Talvez haja algo de errado comigo", disse uma paciente à psicóloga Deborah Luepnitz.

"Quando não há um homem em minha vida, eu me sinto vazia e indigna de ser amada, não aprecio quase nada. Quando me aproximo de um homem, me sinto asfixiada."

Luepnitz relata esta experiência no livro Os Porcos-Espinhos de Schopenhauer (Ed. José Olympio, 2006). Ela teve a ideia de contar à paciente a parábola que inspirou o nome de seu livro – o dilema do ouriço, ou do porco-espinho.

Ela e outros pacientes que recorreram à psicóloga com problemas similares acharam a parábola "reconfortante". O que é curioso, já que o autor do dilema, longe de ser reconfortante, era um tanto espinhoso.

Arthur Schopenhauer (1788-1860) costuma ser descrito como o "filósofo do pessimismo".

Pensador jovem e radical na Alemanha do início do século 19, ele atacava as ideias dominantes, criticando o eminente filósofo Georg Hegel (1770-1831) como sendo um charlatão pomposo e reagindo ao seu idealismo absoluto.

A ideia central de Schopenhauer era que tudo no mundo é impulsionado pela vontade ou, em termos gerais, pelo desejo incessante de viver.

Mas ele não considerava isso como algo positivo. Ele não se referia à vontade como algo que podemos controlar, mas como algo que nos escraviza — uma exigência infinita que nunca é satisfeita.

Schopenhauer defendia que, com isso, ficamos oscilando inutilmente entre o sofrimento e o tédio. Para ele, a única escapatória para a tirania da vontade se encontra na arte, particularmente na música.

O dilema

O dilema do porco-espinho surgiu em 1851, na coleção de ensaios filosóficos curtos de Schopenhauer, intitulada Parerga e Paralipomena (Ed. Zouk, 2016) — em grego, "apêndices e omissões".

Esta foi sua última obra e a primeira a trazer o reconhecimento filosófico que ele aguardava por tanto tempo.

Schopenhauer destacou, satisfeito, que aquele livro foi "incomparavelmente mais popular" do que toda a sua obra anterior.


Arthur Schopenhauer, em torno de 1815, em retrato de L. S. Ruhl

Seus outros livros tiveram muito pouca repercussão. Não havia nada que previsse o impacto que ele teria no futuro sobre a filosofia ocidental, influenciando obras de artistas e escritores como Richard Wagner, Marcel Proust, Albert Camus e Sigmund Freud.


A parábola diz o seguinte:


"Em um dia gelado de inverno, diversos ouriços se amontoaram muito próximos para evitar que congelassem, graças ao calor mútuo. Eles logo sentiram a dor causada pelos espinhos dos demais, o que fez com que eles se separassem novamente. Mas a necessidade de calor voltou a uni-los e o recuo dos ouriços se repetiu, de forma que eles ficaram presos entre dois males, até descobrirem a distância adequada na qual eles poderiam se tolerar melhor, uns aos outros."

Parece um conto infantil, mas ele resume a complexa natureza das relações humanas. E, como costuma ocorrer com Schopenhauer, seu final não é muito feliz.

Ele conta que a vulnerabilidade é necessária para que as relações sejam mais transcendentes e satisfatórias, mas ela aumenta o risco de uma dor mais profunda.

E mostra como vivemos presos entre dois males: o isolamento e o risco de nos ferirmos mutuamente.

"A necessidade de sociedade que surge do vazio e da monotonia da vida dos homens os une; mas suas numerosas características desagradáveis e repulsivas, além dos seus inaceitáveis inconvenientes, separam-nos mais uma vez", prossegue Schopenhauer.


"A distância média que eles finalmente descobrem e lhes permite suportar ficar juntos são a cortesia e os bons modos. Em virtude disso, o fato é que a necessidade de calor mútuo só será satisfeita de forma imperfeita, mas, por outro lado, eles não sentirão a picada dos espinhos."

Segundo o autor, portanto, estaríamos condenados a nunca satisfazer totalmente o desejo de termos relações sociais positivas, que é uma das necessidades humanas mais básicas e universais.

A distância prudente

Apesar do pessimismo, a genialidade da parábola reverbera com as pessoas que estudam os desafios da intimidade.

O pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), popularizou a parábola em 1921, no seu livro Psicologia das Massas e Análise do Eu (Ed. Cia. das Letras, 2011).

Ele discute a "ambivalência dos sentimentos", inerente aos relacionamentos de longo prazo.

Para Freud, o afeto puro não existe. No amor, existe ódio; e, no ódio, existe amor.


Encontrar a distância adequada é fundamental, segundo esse raciocínio

Como Freud, outros pesquisadores das relações interpessoais estudaram a parábola. Ela serviu de ponto de partida para vários estudos.

Um deles se chama Does Social Exclusion Motivate Interpersonal Reconnection? Resolving the "Porcupine Problem" ("A exclusão social motiva a reconexão interpessoal? Resolvendo o 'problema dos porcos-espinhos'", em tradução livre).

Nele, seus autores Jon Maner, Nathan DeWall, Roy Baumeister e Mark Schaller examinam como as pessoas reagem ao ostracismo.

Em outros casos, a parábola do porco-espinho serviu de ferramenta para confortar pacientes atormentados por sentimentos relativos às suas relações íntimas, como no caso que conta a psicóloga Deborah Luepnitz.

Para ela, muitos de nós experimentamos "a solidão como um fracasso pessoal, não como uma condição essencialmente humana".

"A parábola normaliza um problema que muitos de nós consideramos um defeito específico de caráter", escreveu ela.

A parábola do porco-espinho também serviu para ilustrar a importância dos limites, tanto físicos quanto emocionais, além de outros aspectos das relações interpessoais.

Ela também figurou na cultura popular, especialmente na aclamada série de anime Neon Genesis Evangelion (1995), elogiada por explorar uma série de questões filosóficas e psicológicas.

O personagem principal da série, Shinji Ikari, é um jovem abandonado pelo pai. Ele luta contra depressão e ansiedade.

O dilema do porco-espinho é apresentado no terceiro episódio da série e desenvolvido no episódio seguinte — que, em inglês, tem exatamente este título. Ele explica a tendência de Shinji de se afastar das pessoas para evitar o risco de se machucar.

"Com o tempo, ele irá resolver", explica Misato Katsuragi, outra personagem principal. "Parte de crescer consiste em tentar várias vezes e, por tentativa e erro, encontrar a distância adequada para evitar que se machuque."


Schopenhauer tendia a se afastar dos seres humanos, preferindo a companhia de outros seres: seus cães (Desenho de Wilhelm Busch)

Outra menção conhecida apareceu na série This Emotional Life ("Esta vida emocional", em tradução livre). Produzida pela TV pública americana PBS, ela trata da natureza da felicidade, dos relacionamentos e da condição humana, na visão de Elizabeth Gilbert, autora do livro Comer, Rezar, Amar (Ed. Objetiva, 2008).

"Os ouriços que haviam aprendido a gerar seu próprio calor eram capazes de manter a distância mais segura dos demais, o que não significava necessariamente viver uma vida de isolamento, mas simplesmente não ser espetado pelos outros", explicou Gilbert.

"O caminho para isso é o segredo mais próximo da felicidade que aprendi na vida."

O próprio Schopenhauer havia avançado um pouco mais em relação à autogeração de calor. Seu texto sobre os porcos-espinhos terminava dizendo:

"Quem tem muito calor interno próprio irá preferir manter-se afastado da sociedade, para evitar dar ou receber problemas ou aborrecimentos."

O filósofo acreditava que tudo o que procurávamos nos demais poderia ser encontrado em uma solidão refinada pelo desenvolvimento do nosso intelecto e pelo aprofundamento da nossa apreciação da arte.

Para ele, se podemos mergulhar em um bom livro ou nos elevar ouvindo uma grande obra musical, por que interagir com seres humanos?

"Como regra geral, é possível dizer que a sociabilidade de um homem é quase inversamente proporcional ao seu valor intelectual", declarou ele, em outro ensaio.

E, para os muito pouco sociáveis, ele considerava a solidão como "duplamente vantajosa".

"Em primeiro lugar, ela permite que você esteja consigo mesmo e o impede, em segundo lugar, de estar com os demais — uma vantagem muito importante, considerando a quantidade de restrições, aborrecimentos até perigos existentes em qualquer relação com o mundo."

Schopenhauer conhecia esta questão por experiência própria. Ele mesmo preferia não se arriscar a se espetar com os espinhos dos demais. Por isso, viveu virtualmente isolado.

Depois de uma longa carreira filosófica, Schopenhauer morreu no seu apartamento em Frankfurt, na Alemanha, em 1860. Ele tinha 72 anos.

Nos últimos anos de vida, o filósofo recebeu a aclamação que sempre procurou, mas nunca teve sucesso no amor — pelo menos, entre os seres humanos, já que ele contava com o afeto dos cães que sempre o acompanhavam, menos dispostos a mostrar os seus espinhos.



Fonte:

BBC NEWS BRASIL

18 agosto 2024


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE AMÓS OZ

 


    “... se não fosse Judas Iscariotes talvez não tivesse havido crucificação, e sem crucificação não haveria cristianismo.” 

(Amós Oz in JUDAS)

terça-feira, 20 de agosto de 2024

MÚSICA: CARTOLA, UM SONHO QUE A GENTE TEVE

 ‘BATE OUTRA VEZ’

UMA CRÔNICA DE DANIELA ARAGÃO



Nosso cancioneiro traz ao longo de sua trajetória um acervo de composições que tematizam o amor em suas mais variadas instâncias. A tradição romântica enovela nossa rica diversidade de gêneros, que passa pela modinha, valsa, samba canção, choro, partido alto, baião, sertanejo, bossa-nova, rock e amplos desdobramentos. Não posso deixar de citar “Juventude transviada” e “Chuvas de verão”, duas composições, que aos olhos imperdoavelmente críticos de meu pai, eram consideradas as mais belas de nossa música popular brasileira. Hoje me bate uma vontade imensa de ouvir Cartola, autor de canções sublimes, que desvelam o amor com uma densidade lírica inigualável.

“Ainda é cedo amor/ Mal começaste a conhecer a vida/ Já anuncias a hora de partida/ Sem saber mesmo o rumo que irás tomar/ Preste atenção querida/ Embora eu saiba que estas resolvida/ Em cada esquina cai um pouco a tua vida/ Em pouco tempo não serás mais o que és”. Cazuza canta a primeira faixa de meu vinil (envelhecido pelo tempo), acompanhado pelo virtuoso violão de Raphael Rabello e pela gaita exuberante de Rildo Hora. Uma interpretação cujo cantor se entrega num mergulho que deixa transbordar a delicadeza e o lirismo dos versos profundos de Cartola. Por meio da audição desta faixa, adentrei no vasto mundo deste criador, que, nas palavras do produtor musical Hermínio Bello de Carvalho “Não existiu, foi um sonho que a gente teve”.

Detenho-me num dos mais admiráveis discos realizados em homenagem a Cartola. Lançado em 1988 em vinil, permanece atual na qualidade do repertório, arranjos, músicos e interpretações. O amor é tema constante nas canções, que desvelam dores, desencantos, sonhos, deslumbramentos. Não se trata do derramamento de feição desmedida à moda dos versos de Lupicínio Rodrigues e Maysa, que cantaram o amor exasperado. O amor nas letras de Cartola desponta com a suavidade madura do alumbramento despido de fetiche, como quer a primorosa “Tive sim”, declaração do compositor a sua musa Dona Zica: “Tive sim/ Outro grande amor antes do teu/ Tive, sim/ O que ela sonhava eram/ os meus sonhos e assim/ íamos vivendo em paz/nosso lar, em nosso lar sempre/ houve alegria/ Eu vivia tão contente/ Como contente ao teu lado/ estou/ Tive, sim/ Mas comparar com teu amor/ seria o fim/ Mas vou calar/ Pois não pretendo amor te magoar”. A interpretação de Dona Ivone Lara, com seu timbre singular e afinação, valoriza o coloquialismo da letra de Cartola, que evoca a leveza de um amor maturado de carinho.


“As rosas não falam”, gravada por Gal Costa, acompanhada pelo piano de César Camargo Mariano, tornou-se uma das músicas mais conhecidas e gravadas do compositor. Rosa, elemento presente em abundância nas canções de Dorival Caymmi, cintila na letra de Cartola com uma intensidade imbuída de uma inexorável sensação de impermanência: “Queixo-me as rosas/ Mas que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”. A natureza para Cartola é cenário que recobre o fascínio pela chegada do amor, ou a resignação diante da certeza de sua irremediável finitude. A cantora Vânia Bastos, com seu agudo cristalino, enaltecido pelas notas do piano de Eduardo Souto Neto, colore o traçado melódico ascencional que reveste o estado de paixão: “Linda/ te sinto mais bela/te fico na espera/ Me sinto tão só aí/ O tempo que passa em dor maior/ bem maior/ Linda no que se apresenta/o triste se ausenta fez-se a alegria corra e olhe o céu que o sol vem trazer bom dia”.

Resignação, parece ser a palavra que melhor traduz o estado das emoções descritas com plenitude poética nas composições de Cartola. “Minha”, interpretada pela voz rica em dinâmica rítmica de Zeca Pagodinho, apresenta um casamento afinado com a base, formada pelo violão de Dino 7 cordas, pandeiro de Milton Manhães e Bandolim, de Zé Meneses. A mulher desejada escapuliu do desejo de posse de seu conquistador, que celebra em tom de auto-ironia sua própria incapacidade afetiva: “Minha quem disse que ela foi minha/ Se fosse seria a rainha// minha ela não foi um só instante/ como diziam as cartomantes/ como eram falsas as bolas de cristal”.

“Amor proibido”, gravada em dueto pelos grandes compositores Paulinho da Viola e Elton Medeiros, dá encadeamento a sensação de fugacidade da vivência amorosa. A sutileza da caixinha de fósforo tocada por Elton, oferece um encorpamento rítmico ao violão de Paulinho. Neste caso, Cartola é alimentado pela manifestação de inconformismo, que tomou também fortemente muitas criações do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues, que este ano completaria um século de existência: “Mas, enquanto houver força em meu peito/ Eu não quero mais nada/Só vingança, vingança, vingança/Aos santos clamar/ Ela há de rolar como as pedras/ Que rolam na estrada”. Transborda certo senso de vingança da ânima tão nobre do compositor da Verde e Rosa: “Sabes que vou partir/ Com os olhos rasos d’água/ E o coração ferido/ Quando lembrar de ti/ Me lembrarei também/ Deste amor proibido/ Fácil demais/ Fui presa/ Servi de pasto/ Em tua mesa/ Mas fique certa que jamais/ Terás o meu amor/ Porque não tens pudor”.

Cartola foi de fato um sonho que a gente teve.



Fonte:

Autora: Daniela Aragão

Revista Prosa Verso e Arte

21 de setembro de 2022






***


** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. 

domingo, 18 de agosto de 2024

USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE JESSÉ DE SOUZA

 


    A liberdade que nosso liberalismo sempre defendeu foi a liberdade de saquear a sociedade, tanto o trabalho coletivo quanto as riquezas nacionais, para o bolso da elite da rapina que sempre nos caracterizou.

Jessé Souza in A ELITE DO ATRASO

sábado, 17 de agosto de 2024

AILUROFILIA - PAIXÃO POR GATOS: HEMINGWAY

 O VELHO E OS GATOS 

(DE 6 DEDOS)


O governo federal americano resolveu “tombar” os gatos de Ernest Hemingway e transformá-los em patrimônio nacional.



São 50 gatos herdeiros legitimados em testamento pelo Prêmio Nobel de 1954, estrelas de livros como Hemingway’s Cats (Pineapple Press), que moram no 907 da Whitehead Street, em Old Town Key West, pequena ilha cercada pelo mar azul-turquesa da Flórida, na antiga casa feita de pedras nativas. Hemingway viveu de 1931 a 1940, bebeu e escreveu neste sobrado em estilo colonial espanhol pé na areia cercado por um jardim tropical e decorado por móveis antigos e animais empalhados (não gatos), hoje The Ernest Hemingway Home & Museum.


Alguns dizem que foi o período mais produtivo do autor de O Velho e o Mar, inventor do romance moderno que embola vida pessoal e ficção permeada por diálogos que causam efeitos na narrativa. Imitado por muitos de nós. Por mim, com certeza. Escrevia em pé na companhia de gatos de seis dedos. Normalmente eles têm cinco dedos na frente e quatro atrás.

Foi o capitão de um barco de Boston quem presenteou Hemingway com um gato da raça Maine Coon branco de seis dedos, Snowball. O bichano tendo em quem se inspirar achou que Key West era sempre uma festa e saiu espalhando o sêmen e o problema genético conhecido como polidactilia, depois de golinhos de leite e sobras de rum.


Hoje, os herdeiros são tratados e vacinados pelo veterinário Edie Clark e cercados por uma tela inclinada para dentro para impedir a fuga. A companhia farmacêutica Pfizer garante remédios para o bem-estar dos felinos, livres de pulgas e outros parasitas. A contrapartida é que os usa em anúncios.

Hemingway dava nome de pessoas famosas a seus gatos, como Picasso e Simone de Beauvoir. A tradição é seguida. Quer apostar que tem um Roth lá, gato velho e tarado, resmungando de dores no reto?


Se Snowball vadiou bastante pela ilha, calcula: os gatos que vivem lá e são tombados são da décima geração dos que se enrolaram pelos pés de Hemingway, ronronaram para ele, passearam entre seus papéis e lamberam seus beiços lambuzados de mojito. O velho Roth é pra lá do octaneto do escritor.

Não conheceram “Papa”, no entanto exercem um fascínio peculiar. Fãs, leitores e turistas em busca dos cruzeiros caribenhos dão uma paradinha para vê-los. Lá estão os tataranetos dos tataranetos daquele mulherengo beberrão que gostava de caçar, pescar e de touradas, lutou em três guerras e deu um tiro de fuzil na boca.

Melhor blindar os peludos da ira dos flashes.



Fonte:

Autor: Marcelo Rubens Paiva

– O Estado de S.Paulo, 29 de dezembro de 2012


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

USE COMO EPÍGRAFE ESTAS PALAVRAS DE ISAIAS EDSON SIDNEY

(Desenho de Toni D'Agostinho)
 

    Por trás de um ferrenho moralista, há sempre um criminoso ativo ou em potencial, principalmente no campo não das parafilias, que são desvios da norma sexual que têm por base a diversidade do desejo humano e não são nem doenças nem provocam mal a outros, já que suas práticas são consensuais, mas no campo das perversões, em que o objetivo do prazer extrapola qualquer respeito ao outro, como no caso do estupro, da pedofilia, da zoofilia etc. Por isso, eu sempre desconfio dos moralistas de plantão, aqueles indivíduos que apontam o dedo para o que eles acham que são os desvios dos outros, porque quase sempre estão tentando ocultar as suas taras perigosas, perniciosas e desrespeitosas. 

(Isaias Edson Sidney, em algum blog)

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

MEDICINA: MENOPAUSA


SE MENOPAUSA FOSSE EM HOMENS, CIÊNCIA JÁ TERIA AGIDO



Somos muito tolerantes com as dores das mulheres, sejam elas físicas ou da alma –como se fosse possível haver distinção.

Imagine você, caro leitor, que ao chegar perto dos cinquenta anos, em plena atividade profissional, surgissem insônia, queda de cabelo, ressecamento na pele, nos olhos e na mucosa do pênis, infecções urinárias de repetição, sangramento genital com duas semanas de duração, sensação de inchaço, cólicas abdominais, fadiga, indisposição, diminuição da libido e dor nas relações sexuais, coisas que sua companheira interpretasse como perda do interesse por ela.

Suponha que esse sofrimento viesse acompanhado de episódios aleatórios de calores na metade superior do corpo e de sudorese intensa, a ponto de o suor pingar do rosto e ensopar a camisa no meio de uma reunião no escritório ou numa festa de casamento, seguidos de frio intenso, que se repetissem várias vezes por dia, inclusive à noite, ocasiões em que você acordasse três ou quatro vezes para se livrar das cobertas, até vir um frio de bater os dentes mesmo com dois cobertores, inconvenientes que interrompessem o sono de sua mulher.

Imagine que, ao mesmo tempo, baixasse uma neblina cerebral que embotasse a memória, o raciocínio, a capacidade de fazer contas e de lembrar palavras e nomes de pessoas. E pior, que você entrasse num estado de irritação que comprometesse a harmonia familiar e profissional, a alegria de viver e deixasse você deprimido e incapaz de conter crises de choro inexplicáveis.

Suponha ainda que esses desconfortos levassem você ao médico e ele lhe dissesse que isso era "coisa de homem", que nada havia a fazer até o quadro regredir espontaneamente em alguns meses, quando na verdade poderia durar vários anos (os calores, por exemplo, chegam a permanecer por mais de dez anos; atendi senhoras de 70 anos que ainda se queixavam deles).

Sabe o que aconteceria, prezada leitora? A ciência já teria encontrado caminhos para combater esses problemas. Como eles se instalam apenas em mulheres, no entanto, o mundo científico só começou a se interessar por eles a partir dos anos 1990, quando a reposição hormonal entrou em voga. Ginecologistas, então, passaram a prescrevê-la de rotina para grande número de mulheres quando se aproximavam da menopausa. Alguns defendiam que se tornasse obrigatória a partir das primeiras irregularidades menstruais ou dos primeiros sintomas sugestivos. Os mais radicais recomendavam-na a partir dos 40 anos.

O balde de água fria veio com um estudo desenhado com metodologia hoje considerada imprecisa: o Women’s Health Initiative (WHI), coorte com mais de 160 mil americanas em menopausa. Publicado em 2002, os resultados mostraram que a reposição provocava um "aumento pequeno do risco de câncer de mama e de doenças cardiovasculares". Segundo os autores, no caso do câncer de mama, esse aumento era "muito pequeno": menos de 0,1% ao ano. Por outro lado, houve redução da perda óssea, do número de fraturas e da incidência de câncer de cólon.

Os resultados ganharam as primeiras páginas dos jornais. Como percepção de risco confunde pessoas não familiarizadas com estatísticas, a reposição caiu em descrédito. Mas veja: o aumento do risco de câncer de mama foi de 26%. Parece muito, não? Só que, dos 50 aos 60 anos, o risco de uma mulher desenvolvê-lo é de 2,33%. Aumentar 26% significa elevá-lo para 2,94%. Além do mais, esse risco só aumenta depois de cinco anos de tratamento. A mortalidade pela doença, avaliada 20 anos mais tarde, não mostra diferença em relação às que não tomaram hormônios.

Nos últimos anos, diversos estudos revelaram que a reposição prescrita hoje emprega doses muito mais baixas do que as prescritas no WHI e que os efeitos colaterais são menos problemáticos. Por exemplo; mulheres que retiraram o útero por alguma razão podem receber reposição apenas com estrogênio —sem progesterona. Nesses casos, a incidência de câncer de mama diminui.

Prezadíssima leitora, o que fazer com tantas informações, algumas das quais contraditórias? Discutir a reposição hormonal é um direito da mulher. É um tratamento capaz de aliviar sintomas muito desagradáveis, reativar a libido e melhorar a vida na menopausa. Não é pouco.

E os problemas associados a ela? Precisam ser avaliados caso a caso por médicas e médicos informados, desses que não perderam o gosto de acompanhar a literatura científica.




Fonte:

Autor: Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

FSP 03.05.2023

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE AMÓS OZ

 


"O judaísmo e o cristianismo, e também o Islã, desfilam todos eles o néctar da graça, da justiça e da compaixão, mas só enquanto não têm nas mãos algemas, grades, poder, porões de tortura e cadafalsos. Todas essas crenças, e mais aquelas que nasceram nas últimas gerações e continuam até hoje a enfeitiçar muitos corações, todas vieram para nos salvar e rapidamente acabaram derramando nosso sangue". 

(Amós Oz in JUDAS)

domingo, 11 de agosto de 2024

HUMOR: A UTOPIA DO CU

A UTOPIA DO CU



Finalmente, depois de séculos de recalque e aparições muito pontuais (refiro-me à clássica capa de “Todos os olhos”, de Tom Zé), o cu emerge com força na cena cultural brasileira. Dos muros onde lemos “cu é lindo” à “Polka do cu” de Tatuagem, filme de Hilton Lacerda, passando pela literatura de Hilda Hilst e por Cooking, o belo – e, dirão alguns, polêmico – vídeo de Tunga para a série Destricted, ele, o cu, está por toda parte. Isso para não mencionarmos certo movimento na política brasileira contemporânea que decidiu investir pesadamente na colonização de nossos cus, colocando-os, não poucas vezes, no centro dos debates que marcaram estas últimas eleições.


Recentemente foi traduzida para o português uma conferência de Eduardo Viveiros de Castro na qual o provérbio popular “Quem tem cu tem medo” é analisado. De acordo com o antropólogo, diferentemente das leituras, marcadas por uma certa paranoia, que veem no provérbio a virtual presença de um estupro anal, o que está em jogo é o caráter “indiferentemente compartilhado” do cu. Ele atravessa as tradicionais divisões de gênero – masculino e feminino – e espécie – “o ânus (ou equivalente) é parte dos principais, senão de todos os planos corporais do reino animal”. Assim, o medo – como o cu – pode ser entendido como essencialmente democrático: todos temos.



Apesar da onipresença do cu entre nós, os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari destacam que o cu foi “o primeiro órgão a ser privatizado, removido do campo social”. E como tudo o que é violentamente privado da vida pública por longos períodos de tempo, o cu agora se insurge contra o sistema que o baniu. Liu-liu, personagem de uma micro-narrativa escrita por Hilda Hilst, por exemplo, é um sapo que, com muita pena do seu cu, que só olhava para o chão, informou-se e deu o seu jeito para receber um raio de sol no cu. Mas Liu-liu ficou divido. Seu cu, maravilhado com a beleza do mundo, pois sequer sabia da existência das borboletas, teve problemas sérios de auto-estima.

Já que todos temos, não há porque se pavonear por portar um cu, diz Viveiros de Castro, mas também não precisamos negá-lo. Cooking, o já mencionado filme de Tunga, lança mão do que alguns chamarão de escatologia, outros de amor, e mostra como o cu e a boca – as duas dobras que nos confundem sobre a interioridade e a exterioridade de nós mesmos – são dotados de uma potência que magnetiza o nosso olhar e, ao mesmo tempo, escandaliza. O escândalo, claro, tem a ver com o banimento do cu, e de suas atividades, de nossas paixões. Quanto tempo precisamos estar com alguém até nos sentirmos suficiente à vontade para deixar o cu falar? A resposta parece ser: tempo suficiente para a paixão esfriar e virar outra coisa.

Mas tudo indica que o cu está reconquistando seu espaço. Encontrar, nos muros da cidade, o verso “cu é lindo” ou ir ao cinema e ser lembrado de que temos cu parecem ser passos importantes na redescoberta deste importante canal de comunicação com o mundo. A utopia do cu, anunciada no fim do número musical de Tatuagem, reinaugura um modo menos hierárquico, mais debochado, de coabitar o espaço partilhado. Contra os re-emergentes autoritarismos e fundamentalismos, nada como a redescoberta do cu!




Fonte:

Autor: Icaro Ferraz Vidal Junior


Icaro Ferraz Vidal Junior graduou-se em Estudos de Mídia na UFF e é mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É pesquisador e vive de bolsa em bolsa por aí. Atualmente mora em Bergamo, Itália, onde faz um doutorado sobre os significados da boca e do cu na arte contemporânea (ainda não consegue não fazer piada ao falar sobre o assunto).