A UTOPIA DO CU
Finalmente, depois de séculos de recalque e aparições muito pontuais (refiro-me à clássica capa de “Todos os olhos”, de Tom Zé), o cu emerge com força na cena cultural brasileira. Dos muros onde lemos “cu é lindo” à “Polka do cu” de Tatuagem, filme de Hilton Lacerda, passando pela literatura de Hilda Hilst e por Cooking, o belo – e, dirão alguns, polêmico – vídeo de Tunga para a série Destricted, ele, o cu, está por toda parte. Isso para não mencionarmos certo movimento na política brasileira contemporânea que decidiu investir pesadamente na colonização de nossos cus, colocando-os, não poucas vezes, no centro dos debates que marcaram estas últimas eleições.
Recentemente foi traduzida para o português uma conferência de Eduardo Viveiros de Castro na qual o provérbio popular “Quem tem cu tem medo” é analisado. De acordo com o antropólogo, diferentemente das leituras, marcadas por uma certa paranoia, que veem no provérbio a virtual presença de um estupro anal, o que está em jogo é o caráter “indiferentemente compartilhado” do cu. Ele atravessa as tradicionais divisões de gênero – masculino e feminino – e espécie – “o ânus (ou equivalente) é parte dos principais, senão de todos os planos corporais do reino animal”. Assim, o medo – como o cu – pode ser entendido como essencialmente democrático: todos temos.
Apesar da onipresença do cu entre nós, os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari destacam que o cu foi “o primeiro órgão a ser privatizado, removido do campo social”. E como tudo o que é violentamente privado da vida pública por longos períodos de tempo, o cu agora se insurge contra o sistema que o baniu. Liu-liu, personagem de uma micro-narrativa escrita por Hilda Hilst, por exemplo, é um sapo que, com muita pena do seu cu, que só olhava para o chão, informou-se e deu o seu jeito para receber um raio de sol no cu. Mas Liu-liu ficou divido. Seu cu, maravilhado com a beleza do mundo, pois sequer sabia da existência das borboletas, teve problemas sérios de auto-estima.
Já que todos temos, não há porque se pavonear por portar um cu, diz Viveiros de Castro, mas também não precisamos negá-lo. Cooking, o já mencionado filme de Tunga, lança mão do que alguns chamarão de escatologia, outros de amor, e mostra como o cu e a boca – as duas dobras que nos confundem sobre a interioridade e a exterioridade de nós mesmos – são dotados de uma potência que magnetiza o nosso olhar e, ao mesmo tempo, escandaliza. O escândalo, claro, tem a ver com o banimento do cu, e de suas atividades, de nossas paixões. Quanto tempo precisamos estar com alguém até nos sentirmos suficiente à vontade para deixar o cu falar? A resposta parece ser: tempo suficiente para a paixão esfriar e virar outra coisa.
Mas tudo indica que o cu está reconquistando seu espaço. Encontrar, nos muros da cidade, o verso “cu é lindo” ou ir ao cinema e ser lembrado de que temos cu parecem ser passos importantes na redescoberta deste importante canal de comunicação com o mundo. A utopia do cu, anunciada no fim do número musical de Tatuagem, reinaugura um modo menos hierárquico, mais debochado, de coabitar o espaço partilhado. Contra os re-emergentes autoritarismos e fundamentalismos, nada como a redescoberta do cu!
Fonte:
Autor: Icaro Ferraz Vidal Junior
Icaro Ferraz Vidal Junior graduou-se em Estudos de Mídia na UFF e é mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É pesquisador e vive de bolsa em bolsa por aí. Atualmente mora em Bergamo, Itália, onde faz um doutorado sobre os significados da boca e do cu na arte contemporânea (ainda não consegue não fazer piada ao falar sobre o assunto).
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