O SÉCULO DOS CHARLATÕES
Mesmerism
Paris é uma festa, diz o título em português do livro em que Ernest Hemingway (1899-1961) descreve suas experiências na capital francesa cem anos atrás, na década de 1920. O autor, ganhador do Nobel de Literatura de 1954, registra a presença na cidade de artistas e intelectuais da América e de diversas partes da Europa, lançados à deriva pela I Guerra Mundial: a Geração Perdida.
Esse magnetismo parisiense, que atraía para lá tanto gênios legítimos quanto os apenas excêntricos e ainda os impostores mais descarados, não surgiu com a Grande Guerra, no entanto.
Cerca de cento e cinquenta anos antes da “festa móvel” de Hemingway – em linhas gerais, nos cem anos compreendidos entre 1740 e 1840 – a Cidade Luz foi o paraíso dos charlatões e dos embusteiros audazes. Por lá passaram imortais, alquimistas, curandeiros – e muitos deles viveram muito bem, jantando nos salões da aristocracia, drenando a fortuna de nobres preocupados com o segredo da vida eterna e servindo de confidentes para altos funcionários do Estado, ou mesmo para o rei (enquanto havia rei: o Século dos Embusteiros abraça a Revolução Francesa).
A era foi inaugurada, em grande estilo, pelo Conde de Saint-Germain (c. 1690-1784). Essa figura misteriosa surge primeiro na Inglaterra, como músico e compositor. Horace Walpole (1717-1797), político e escritor inglês mais conhecido por ter lançado a moda do terror gótico com seu romance “O Castelo de Otranto”, menciona, em uma de suas cartas de 1745...
“Um homem estranho, que usa o nome de Conde de St. Germain. Ele tem estado por aqui nos últimos dois anos, e não diz quem é, ou de onde vem, mas afirma que não usa seu verdadeiro nome. Canta, toca o violino maravilhosamente, compõe, é louco e não muito sensato. Dizem que é italiano, espanhol, polonês; alguém que se casou com uma grande fortuna no México e fugiu para Constantinopla com as joias da esposa...”
Walpole acrescenta que esse “homem estranho”, preso por suspeita de espionagem, já havia sido solto, mas não tinha deixado Londres, “o que me convence de que não se trata de um cavalheiro”.
Trezentos anos
Encontramos Saint Germain em Paris, bem estabelecido e em bons termos com o rei Luís XV (1710-1774) e sua amante, Madame de Pompadour (1721-1764), em 1758. Algumas cartas da década anterior, porém, sugerem que ele já tinha acesso à corte de Versailles muito antes, em 1748 ou 1749. Uma hipótese sobre sua identidade é de que seria um nobre da Transilvânia, fugindo de perseguição movida pelo Império Austro-Húngaro. A ideia é defendida pelo compositor Johan Franco (1908-1988) em um influente artigo publicado em 1950. Contra isso, pesa a objeção de que se tornar famoso como mago, alquimista e imortal, ainda mais na alta sociedade parisiense, não parece um modo muito prático de permanecer incógnito.
Em suas volumosas memórias, o famoso sedutor Giacomo Casanova (1725-1798) refere-se a Saint-Germain como o “rei dos impostores e charlatões, que afirmava, de modo tranquilo e confiante, ter mais de trezentos anos de idade, conhecer os segredos da Medicina Universal, possuir o domínio da natureza, ser capaz de derreter diamantes, moldando, a partir de dez ou doze pequenas gemas, um único grande diamante da mais fina água”.
O próprio Casanova encaixa-se muito bem na paisagem da Paris dos Grandes Charlatões. Mais famoso por suas aventuras sexuais, o veneziano não hesitava em apelar para a magia quando o que estava em jogo era a simpatia (e o dinheiro) de uma dama da sociedade. Casanova insinuou-se como mago e alquimista para conquistar as graças da rica viúva Jeanne Camus de Pontcarré, marquesa d’Urfé (1705-1775).
O sedutor escreve que, depois de impressioná-la com um truque de cabala e numerologia, “deixei-a, levando comigo seu coração, sua alma, sua mente e o pouco de bom senso que ela ainda tinha”.
A marquesa acreditava que, por ser mulher, jamais conseguiria dominar todos os segredos das artes místicas, e por isso desejava produzir um filho homem em que sua alma pudesse reencarnar. Casanova concordou em ajudá-la, mas procrastinou a realização do “ritual” de fertilização por anos a fio – nesse meio tempo, extraindo dela favores, dinheiro e auxílio. A cerimônia foi finalmente realizada em 1763, e a marquesa rompeu relações com o veneziano pouco depois.
Magia magnética
Foi nesse clima cultural que o médico alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815) estabeleceu-se em Paris, cerca de 15 anos depois das aventuras de Casanova com a marquesa e menos de uma década antes dos escândalos envolvendo outro grande charlatão místico, o Conde Cagliostro (1743-1795).
(Alessandro di Cagliostro, na verdade um falsário e impostor siciliano, cujo verdadeiro nome era Giuseppe Balsamo, criou para si uma persona que era uma versão hiperbólica, operística, do tipo estabelecido pelo Conde de Saint Germain. Suas aventuras não cabem todas neste espaço, mas voltaremos a falar dele em breve.)
Mesmer dizia ter descoberto uma nova foça da natureza, o “magnetismo animal”, que seria uma manifestação do mesmo fluido universal responsável por produzir a força da gravidade e o ferromagnetismo: um poder sutil com o qual ele se propunha a, ao manipular os fluxos do “fluido magnético” nos corpos de seus pacientes, curar doenças nervosas (isto é, mentais ou psicossomáticas) “diretamente” e males físicos “indiretamente” (a despeito desse “disclaimer” original de Mesmer, publicado em 1779, nos anos seguintes o magnetismo animal passou a ser promovido pelo lema “uma só doença, uma só cura”).
O poder magnético podia ser emitido pelos dedos do terapeuta, influenciando diretamente o paciente. Também seria possível saturar certas substâncias, como água, com ele. Entre os postulados do médico, encontram-se:
“A ação [do fluido] faz-se sentir à distância, sem o auxílio de corpos intermediários; é intensificada e refletida por espelhos, assim como a luz. É comunicada, intensificada e propagada pelo som. Esse poder magnético pode ser estocado, concentrado e transportado”.
É difícil, se não impossível, saber até que ponto Mesmer enganava-se a si mesmo tanto quanto enganava seus pacientes. Mas a decisão de se mudar para a Paris dos aventureiros e da nobreza ansiosa por mágica e fantasia veio depois de seu fracasso na tentativa de usar o magnetismo animal para curar a cegueira da pianista e compositora Marie-Thérèse Paradis (1759-1824), uma protegida da imperatriz da Áustria.
Mesmer apresentava-se mais como homem de ciência do que do oculto, mas vivia-se uma época de fronteiras fluidas. Saint Germain, por exemplo, aparentemente tinha um interesse sincero no que poderia ser chamado de química industrial, convencendo Luís XV e, depois, o príncipe dinamarquês Karl de Hesse-Kassel (1744-1836) a estabelecer laboratórios para a produção de tintas e tinturas.
As transformações de perspectiva trazidas pela nova filosofia do Iluminismo e pelos avanços científicos e tecnológicos da nascente Revolução Industrial tornavam muito fácil confundir realidade e ficção. Em seu clássico “Mesmerism and the End of the Enlightenment in France” (“Mesmerismo e o Fim do Iluminismo na França”), o historiador Robert Darnton nota que, em 30 de abril de 1784, o “Journal de Paris” noticiava “a perda de um elemento”: depois de milênios de predomínio da teoria de que tudo na natureza era feito de quatro elementos fundamentais – água, fogo, terra e ar – o químico Antoine Lavoisier (1743-1794) e o matemático Jean Baptiste Meusnier (1754-1793) haviam demonstrado que a água era “na verdade, ar” (isto é, composta de dois gases – que hoje chamamos de oxigênio e hidrogênio).
Se gases – fluidos invisíveis – eram capazes de produzir água, por que não curar doenças? Mesmer logo se tornou uma sensação em meio à aristocracia parisiense.
Para atender ao máximo possível de pacientes de uma vez, Mesmer criou salas onde havia grandes tanques de água “magnetizada”, e dos quais partiam hastes metálicas (essa é a imagem que ilustra este artigo). As salas eram decoradas com luzes, espelhos e as sessões, acompanhadas por música. Os pacientes mais próximos dos tanques seguravam diretamente as hastes com uma das mãos, e com a mão livre tocavam uma das mãos de outros, mais afastados, que por sua vez seguravam as mãos de outros e esses, de mais outros. Cordas presas aos tanques também percorriam a sala, e envolviam os corpos de pacientes. Desse modo, a “corrente magnética” atravessava dezenas de pessoas, numa atmosfera de alta carga emocional, causando convulsões, choro, gargalhadas, gritos – e, em alguns casos, supostamente, curas.
O teste
Mas toda festa uma hora acaba, e em 1784 o rei Luís XVI, talvez incomodado pelo caráter escandaloso e orgiástico das sessões mesméricas, encomendou um relatório sobre magnetismo animal, estabelecendo uma comissão formada, entre outros, por Lavoisier e Benjamin Franklin (1706-1790), então embaixador dos Estados Unidos na França e, na época, uma das maiores autoridades vivas em eletricidade.
O relatório que a comissão produziu é um marco na história do pensamento crítico e da evolução do método científico. Stephen Jay Gould (1941-2002) afirma, em seu ensaio clássico sobre o caso (“The Chain of Reason versus The Chain of Thumbs”, ou “A Cadeia de Raciocínio contra a Corrente de Polegares”), que Lavoisier provavelmente organizou os trabalhos e redigiu o relatório final, enquanto Franklin ficou encarregado de criar e conduzir experimentos.
Logo de saída, a comissão adotou a postura metodológica de determinar não se curas estavam acontecendo nas sessões de magnetismo, mas se o magnetismo existia. A razão era clara: curas podem ter várias causas, incluindo tratamentos paralelos e o próprio curso normal da natureza, mas se o magnetismo animal não existisse, ele certamente não poderia ser causa de nada. Ou, nas palavras da comissão: “o magnetismo animal pode existir e ser inútil, mas certamente não pode ser útil caso não exista”.
Os experimentos definitivos envolveram o que hoje chamaríamos de cegamento: às vezes os voluntários acreditavam estar sendo magnetizados, mas não estavam; às vezes acreditavam que não havia nada de magnético no ambiente, mas na verdade estavam bebendo água magnetizada, ou em contato com materiais magnetizados.
Com esse trabalho, ficou evidente que o que causava as crises, convulsões, choros e supostas “curas” não era o hipotético magnetismo animal, mas o estado de crença dos pacientes. A conclusão do relatório: “Imaginação sem magnetismo animal produz convulsões. Magnetismo animal sem imaginação não produz nada”.
Mesmer havia se recusado a participar dos testes, dizendo que a comissão deveria contentar-se em falar com seus pacientes satisfeitos, rejeitando a metodologia proposta. Essa recusa em submeter-se aos termos da investigação de Lavoisier antecipa a falácia das “diferentes epistemes”, tão comum na medicina alternativa dos dias de hoje.
A tarefa de representar a escola do magnetismo animal perante a ciência acabou delegada a seu principal discípulo, o médico Charles d’Eslon, ou Deslon (1750-1786).
O resultado frustrante dos testes da comissão levou a acusações várias, muito choro e ranger de dentes. Mas, com o apoio do rei, o relatório teve difusão ampla e marcou o início da decadência do mesmerismo enquanto prática chique, da moda.
Depois da festa
Mais ou menos na mesma época em que o relatório da comissão sobre magnetismo animal era elaborado, o Conde Cagliostro caía em desgraça na sociedade parisiense, não por causa de suas pretensões místico-esotéricas, mas por ter sido acusado de participação no Caso do Colar de Diamantes, uma tentativa de envolver a rainha Maria Antonieta (1755-1793) num esquema rocambolesco, que incluía um cardeal e duas prostitutas, para fraudar um rico joalheiro.
E assim podemos imaginar que o caso de amor de Paris com os Grandes Embusteiros da Idade da Luzes havia chegado de vez ao fim. Mas não. Um bom baile de gala tende a produzir um rastro de eventos menores – como os convidados de uma festa de casamento que, após o fechamento do salão, resolvem esticar a noite no boteco da esquina.
No caso de Paris, a esticada mais evidente foi a chegada à cidade do pai da homeopatia, Samuel Hahnemann (1755-1843), em 21 de junho de 1835 (Mesmer havia morrido na Suíça vinte anos antes). Hahnemann passaria lá seus últimos anos de vida, atendendo às aflições das damas da alta sociedade – o médico favorito dos ricos e famosos – e construiu uma grande fortuna basicamente receitando e vendendo placebos, prova de que a lição metodológica básica da comissão sobre magnetismo animal – de que é preciso separar efeitos reais de coincidências e de produtos da imaginação – não havia sido aprendida (como não foi até hoje, haja vista o número impressionante de pessoas que acredita que suas experiências pessoais com este ou aquele tratamento provam alguma coisa).
A inclusão de Mesmer e Hahnemann no rol de protagonistas do Século dos Charlatões pode soar controversa. Casanova e Cagliostro obviamente estavam lá para se aproveitar da credulidade alheia. Saint Germain talvez mentisse apenas para se proteger, mas certamente mentia, e tinha consciência disso. Já magnetismo animal e homeopatia parecem elaborações sinceras.
A questão é que, no frigir dos ovos, sinceridade conta muito pouco. As vítimas sofrem do mesmo jeito, e a exploração, intelectualmente desonesta, da fragilidade emocional e cognitiva de deslumbrados e desesperados é a mesma, os “sinceros” ficam ricos e famosos a despeito da dor de suas vítimas, mesmo que involuntárias. A verdade é que já passou da hora de parar de perdoar megalomania irresponsável e vaidade desabrida sob o pretexto de que é tudo feito “com boas intenções”.
Fonte:
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)