sexta-feira, 21 de junho de 2024

SOCIEDADE: O BEIJO - ESCULTURA EM HOMENAGEM A OLAVO BILAC - E O MORALISMO DA SOCIEDADE PAULISTANA

 



BEIJO ETERNO (FRAGMENTO DO MONUMENTO A OLAVO BILAC)





VESTIREMOS TODAS AS OUTRAS ESTÁTUAS NUAS DA CIDADE

Karen Steinman Martini




O Idílio, ou Beijo Eterno, é um fragmento escultórico, integrante do Monumento a Olavo Bilac. Composto pela figura de um casal nu se abraçando, composto por um homem branco e uma indígena, o fragmento é um dos monumentos que mais foi instalado e reinstalado por São Paulo, perambulando por um período de 31 anos e colocado em mais de 5 locais distintos.

Em 1915, Bilac discursou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, defendendo um programa de reforma das práticas políticas nacionais. O episódio inspirou a criação de associações patrióticas, entre elas, a Liga Nacionalista, fundada em 1916, e fez com que o poeta se tornasse uma figura importante para alunos da instituição. Essa relação entre Bilac, a criação da Liga e a Faculdade de Direito explica, em parte, a proeminência do Centro Acadêmico XI de Agosto, organização estudantil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no financiamento da obra.

Após um breve período no qual o monumento foi elogiado após sua instalação em 1922, iniciou-se uma campanha contra a obra e a favor de sua demolição. A campanha contra o monumento a Bilac, nessa fase, tinha mais a ver com motivações políticas e estéticas. Não existem registros de que, na década de 1920, alguém tenha se escandalizado com o fato de a dupla, que era apenas parte do conjunto maior do monumento, estar nua. Em fevereiro de 1935, o jornal a Gazeta anunciou a retirada do monumento da Avenida Paulista em virtude de obras urbanas: “O gesto do prefeito Fábio Prado somente merece aplausos (…)”. Na época, a previsão era de que ele fosse reinstalado no parque D. Pedro II. No entanto, ele foi fragmentado em diversos pedaços que foram levados para o Depósito Municipal da Várzea do Carmo.

MORALISMO E REJEIÇÃO


Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo na época, os fragmentos Beijo Eterno e Caçador de Esmeraldas foram instalados na entrada do colégio estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros. No entanto, pouco tempo depois, o Beijo Eterno voltaria para o depósito, após mobilização de pais de estudantes que consideraram a figura como “imoral”. Em 1953, quando Jânio Quadros, ex-aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, assumiu o cargo de prefeito de São Paulo, resolveu reinstalar alguns fragmentos do monumento e levou o Beijo Eterno para o Largo do Cambuci, um de seus redutos eleitorais. Neste local, mais uma vez, o monumento gerou uma mobilização de moradores do bairro que organizaram um abaixo-assinado para sua retirada, alegando que o fragmento atentava contra os bons costumes. Dez anos depois, em 1966, o então prefeito José Vicente Faria Lima decidiu instalar O Beijo Eterno na entrada do túnel da avenida 9 de Julho, chamado pelo jornal O Estado de São Paulo como “o lugar das estátuas malditas” por agregar um longo histórico de monumentos rejeitados pelo público. Novamente não foi diferente. O vereador Antonio Sampaio, membro da Arena, de porte de um abaixo-assinado organizado por senhoras residentes da avenida 9 de Julho, realizou um inflamado discurso na Câmara, clamando pela retirada da obra vista como “obra do demônio, um verdadeiro escândalo”.

A rejeição recorrente da obra, e as reações suscitadas nos diferentes locais nos quais foi instalada, nos leva a questionar o que compõe esses bons costumes postos em risco pelo monumento, sempre em relação ao seu “teor sexual”. O monumento, inclusive, se tornou um exemplo costumeiro do docente de Medicina Legal da Faculdade de Direito do Largo São Francisco como indicativo de impotência sexual, “já que o homem (francês) resistia às provocações da sensual mulher sem qualquer reação”. Para alguns pesquisadores, esta rejeição revela uma outra camada de preconceitos presentes na sociedade da época, pelo fato de a escultura ser lida popularmente como o retrato de um relacionamento entre uma indígena e um europeu. “Não se tem informação de que o artista queria retratar um beijo inter-racial entre uma índia e um branco, mas foi assim que a obra ficou conhecida. E isso foi tratado de maneira preconceituosa na imprensa. A Gazeta chamou a personagem de ‘bugre’, uma palavra pejorativa para se referir aos indígenas” relata a historiadora Helena Barbuy.


No entanto, pouco antes de a obra ser removida da entrada do túnel da avenida 9 de Julho, em 18 de outubro de 1966, para adentrar os depósitos mais uma vez, ela foi sequestrada por estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e transportada para o ‘território livre’ da Faculdade. Em uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada no dia seguinte à ação, os alunos acrescentam uma ameaça: “se a estátua “Idílio” for retirada do Largo São Francisco, vestiremos todas as outras estátuas nuas da cidade e colocaremos aliança nas que representam pessoas abraçadas”. Para estes, o monumento remetia à própria história da instituição da qual faziam parte, com seu papel na implantação original do monumento, representando também uma atitude de resistência a um discurso moralista presente na sociedade da época, poucos anos após o golpe militar de 1964. Ali, no território livre da Faculdade de Direito a escultura estaria protegida, e é onde ela se encontra desde então. Segundo o jornal universitário a gazeta arcadas, a ação é “um marco histórico para os estudantes da Faculdade de Direito, para lembrarmo-nos do que somos, e do que devemos ser.”



REFERÊNCIAS




XI de Agosto quer a estátua. O Estado de São Paulo, 19 out de 1966.
​​Helena Barbuy. As Esculturas da Faculdade de Direito. Ateliê Editorial, 2017.










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