segunda-feira, 24 de junho de 2024

LINGUAGEM: ORIGEM DO "SERÁ O BENEDITO?"




O BENDITO DO ‘SERÁ O BENEDITO’

Bendito seja quem não compartilha pseudoetimologias. O problema é que algumas já estão tão enraizadas na tradição popular que fica difícil até para os profissionais identificarem o que é lenda e o que é verdade. Eita, mas será o Benedito?

‘Será o Benedito?’ é uma expressão usada para exprimir contrariedade ou surpresa. É como dizer um ‘mas que diabos!’, ‘mas que coisa’ e outras locuções menos publicáveis. Conhecemos o significado, o problema é saber quem é esse tal Benedito. Por que ‘Benedito’ e não ‘Bartolomeu’, ‘Berenice’, sei lá?

Benedito é um nome que já foi muito mais popular no Brasil. Seu auge de batismos, segundo o IBGE, foi na década de 1950, quando registraram-se cerca de 54 mil Beneditos. Na década de 2000, só 2.500.

Antigamente, na maioria dos casos (assim como foi o de meu pai, o Dito), o nome de batismo era dado à criança em devoção a São Benedito, santo católico do século XVI.

São Benedito é italiano, mas sua origem é norte-africana. Ele tinha a pele escura e por isso era Chamado de ‘São Benedito, o Mouro’ e ‘São Benedito, o Negro’. No Brasil colonial, portanto, muitos escravos negros lhe veneravam e pediam proteção.

Um Benedito negro que ficou famoso foi Benedito Caravelas (1805–1885), conhecido como Benedito Meia-Légua. Ele foi um quilombola da região de São Mateus, no Espírito Santo, líder de várias insurgências contra a escravidão e os aristocratas. Meia-Légua conseguiu fugir de várias capturas e buscas, virando uma lenda e um herói da resistência negra no Brasil.

Até aí, tudo bem, confere. O duro é a internet atribuir a Benedito Meia-Légua mais do que se deve. Num fenômeno que não é recente, mas tomou grandes proporções nos últimos tempos, várias páginas de fora e dentro das redes sociais têm compartilhado uma história em que se atribui a origem da expressão ‘será o Benedito?’ a Benedito Meia-Légua.

Sem fontes nem evidência, um único texto, copiado e colado aos montes, sem escrutínio algum, alega que, no Brasil escravista, quando se ouviam notícias de revoltas de escravos, logo se questionava “mas será o Benedito”. Acompanhado ao texto, aparece uma foto em preto e branco de um homem negro de barba grisalha trajando capa e chapéu, que seria o tal Meia-Légua.

A foto original, no entanto, é de autoria do fotógrafo alemão Alberto Henschel, da década de 1860. Henschel foi um dos pioneiros da fotografia brasileira e fez uma série de fotos de habitantes negros de Recife, Pernambuco – bem longe do Espírito Santo. Para a atribuição da expressão, não existe nenhum documento antigo, apenas do século XX em diante.

Antes dessa história ganhar holofotes na internet, até então, a explicação mais famosa é a que o famoso fraseologista Deonísio da Silva apresenta em seu livro ‘De onde vêm as palavras’ (2014). Deonísio fala sobre a especulação que se fazia sobre a nomeação do intendente de Minas Gerais, em 1933, quando Getúlio Vargas governava o Brasil. Cogitavam Benedito Valadares, um político tido como inculto, porém intuitivo e modesto. Sua simplicidade fazia a população se questionar quem seria o novo governador mineiro: “Mas será o Benedito?”

Acontece que há registros da expressão antes da nomeação de Valadares (que virou nome de cidade mineira em 1938). O professor Jean Lauand, da Feusp, publicou um artigo, em 2020, apresentando a verdadeira origem de ‘mas será o Benedito?’.

Valadares se tornou governador em 1933, mas em 1931 já tocava nas rádios uma marchinha de Carnaval muito popular na época, ‘Será o Benedicto?’: “Benedicto, Benedicto/ [...] quando passares pela rua/ Gritando: pipoca e amendoim torrado/ Todas as meninas vão perguntar:/ Será o Benedicto?”. A pergunta do versinho final caiu na boca do povo e se popularizou e passou a ser usada como exclamação em situações de incerteza.

Como eu disse, Benedito era um nome muito comum até primeira metade do século passado, digno de aparecer nas canções populares. A expressão vem de uma marchinha antiga, pouquíssimo conhecida, e só... Associar a expressão, sem evidência alguma, a Benedito Meia-Légua ou a Benedito Valadares é associar a história de dois importantes Beneditos brasileiros a uma fantasia que corrói suas importâncias históricas.




Fontes:


Referência: ‘‘Será o Benedito?’, ‘Conto do Vigário’ etc. – Desmascarando falsas explicações sobre a origem de expressões populares’, de Jean Lauand, na revista ‘Convenit Internacional’ (set.–dez., 2020).

Foto: Alberto Henschel/Convênio Instituto Moreira Salles – Leibniz-Institut für Länderkunde (1869).

Sugestões: Felipe Monteiro e Nyll Louie-Alicê.

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