sábado, 7 de setembro de 2024

MÚSICA: OS "VIRUNDUNS"

 



VIRUNDUM É COISA SÉRIA, EMBORA SEJA IMPOSSÍVEL FICAR SÉRIO DIANTE DELE





Sim, na terra em que brotou o clássico indiscutível "trocando de biquíni sem parar" (por "tocando B.B. King sem parar", verso da canção "Noite do Prazer", da banda Brylho), a produção de virunduns é tão vasta quanto variada.

Há quem aprecie a precisão onomástica de "Meu filho Válter Gomes dos Santos/ que é o nome mais bonito" ("Pais e filhos", Legião Urbana) e quem prefira o clima lisérgico de "Ao sair do avião/ Judy pisou num ímã" ("Açaí", Djavan).

Todos têm em comum a incapacidade de reprimir sorrisos quando expostos a versos crus como "Quem sabe a índia assou uma garotinha" ("Malandragem", Frejat e Cazuza, na voz de Cássia Eller) ou "Aí um analista me comeu" ("Divina comédia humana", Belchior).

Consta que o nome "virundum", baseado em "Ouviram do Ipiranga", foi cunhado por Paulo Francis nos tempos do "Pasquim" para nomear o mal-entendido provocado por uma semelhança sonora fortuita. O batismo em inglês veio antes.

Data de 1954 o artigo em que a jornalista americana Sylvia Wright lançou o neologismo "mondegreen", com base num poema popular do século 17 em que o verso "laid him on the green" (deitou-o na grama) é entendido como "Lady Mondegreen". A confusão é intraduzível, claro. Virunduns sempre são.

O importante é registrar que Wright foi, até segunda ordem, a primeira voz a se levantar em defesa dos mondegreens, sustentando que eles se impõem por serem esteticamente superiores aos versos originais.

Não sei se vou tão longe, por mais que "Scooby-Doo dos sete mares" ("O descobridor dos sete mares", Tim Maia) seja tentador. Quando digo que os virunduns merecem ser levados a sério como fenômeno cultural, penso num argumento semelhante ao que Paulo Rónai usou para defender os trocadilhos em seu livro "Como Aprendi o Português" (Edições de Janeiro).

Inconformado com a fama de "mais baixa forma de humor" que cerca o trocadilho, frequentemente visto por aí em companhia do adjetivo "infame", o erudito húngaro lembrou que ele foi cultivado por grandes escritores, como Shakespeare, e até por Jesus Cristo: "E também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja".

Não fica nisso. Rónai afirma que "o elemento essencial" do trocadilho é a impossibilidade – ou pelo menos a dificuldade – de traduzi-lo para outros idiomas, o que o torna "ligado à substância íntima de cada língua", como a melhor poesia. O virundum é igual.

Pela amostragem que recolhi, fica uma dúvida sobre quem seria o rei dos virunduns na música brasileira. O candidato mais óbvio é Djavan, que além de receber o maior número de citações é dono de um estilo em que a livre associação e os jogos sonoros fazem com que o próprio original já pareça um mal-entendido.

É preciso respeitar quem abre a porta para virunduns como "Mais fácil apedrejar pôneis em Bali" ("Se...") e "Amarelo deserto e os três tenores" ("Oceano"), além daquele que citei ali em cima.

Mas Djavan tem um grande rival em Belchior, dono de um feito raro — dois belíssimos virunduns na mesma canção. Em "Como nossos pais", encontramos "Mas é você que é mal passado e que não vê" e "Tá em casa, guardado por Deus, cortando fio dental". Duelo de titãs.

Fonte:

Autor: Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

FSP 24.05.2023

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