domingo, 30 de março de 2025

AILUROFILIA: UM POEMA DE PABLO NERUDA

 

UM INCRÍVEL POEMA DE PABLO NERUDA PARA QUEM AMA GATOS

(Ágata)



Gatos são animais fascinantes, curiosos, ora mais brincalhões, ora mais reflexivos. São afetuosos e se movimentam com agilidade e graça. A pelagem macia, os olhos penetrantes e profundos desses felinos conquistam muitos admiradores. Se você, assim como eu, ama os gatos, o poema “O gato” de Pablo Neruda irá te cativar.

O poema “Ode ao Gato” de Pablo Neruda, parte de sua obra Odas Elementales de 1954, é um exemplo notável da capacidade do poeta em personificar elementos da natureza e do cotidiano com uma profundidade emocional única. Neste poema, Neruda retrata o gato como um ser misterioso e sensual, capturando sua graça felina e seu comportamento independente. A linguagem utilizada é rica em imagens sensoriais, evocando a suavidade do pelo do gato, seus movimentos elegantes e seu olhar enigmático. Além disso, o poema explora temas como a solidão, o desejo e a conexão emocional, refletindo a intensidade dos sentimentos humanos através da figura do animal. A habilidade de Neruda em dar voz e profundidade a um objeto aparentemente simples como um gato é uma das marcas de sua genialidade poética, que continua a fascinar leitores ao redor do mundo.

Agora leia o poema na íntegra, na versão original em espanhol e na versão traduzida para o português:



ODA AL GATO 

Pablo Neruda


(Rubi)


Los animales fueron

imperfectos,

largos de cola, tristes

de cabeza.

Poco a poco se fueron

componiendo,

haciéndose paisaje,

adquiriendo lunares, gracia, vuelo.

El gato,

sólo el gato

apareció completo

y orgulloso:

nació completamente terminado,

camina solo y sabe lo que quiere.


(Mittens)

El hombre quiere ser pescado y pájaro,

la serpiente quisiera tener alas,

el perro es un león desorientado,

el ingeniero quiere ser poeta,

la mosca estudia para golondrina,

el poeta trata de imitar la mosca,

pero el gato

quiere ser sólo gato

y todo gato es gato

desde bigote a cola,

desde presentimiento a rata viva,

desde la noche hasta sus ojos de oro.


(Jade - desapareceu de casa)

No hay unidad

como él,

no tienen

la luna ni la flor

tal contextura:

es una sola cosa

como el sol o el topacio,

y la elástica línea en su contorno

firme y sutil es como

la línea de la proa de una nave.

Sus ojos amarillos

dejaron una sola

ranura

para echar las monedas de la noche.


(Leon)

Oh pequeño

emperador sin orbe,

conquistador sin patria,

mínimo tigre de salón, nupcial

sultán del cielo

de las tejas eróticas,

el viento del amor

en la intemperie

reclamas

cuando pasas

y posas

cuatro pies delicados

en el suelo,

oliendo,

desconfiando

de todo lo terrestre,

porque todo

es inmundo

para el inmaculado pie del gato.

(Neil)


Oh fiera independiente

de la casa, arrogante

vestigio de la noche,

perezoso, gimnástico

y ajeno,

profundísimo gato,

policía secreta

de las habitaciones,

insignia

de un

desaparecido terciopelo,

seguramente no hay

enigma

en tu manera,

tal vez no eres misterio,

todo el mundo te sabe y perteneces

al habitante menos misterioso,

tal vez todos lo creen,

todos se creen dueños,

propietarios, tíos

de gatos, compañeros,

colegas,

discípulos o amigos

de su gato.

(Marie)


Yo no.

Yo no suscribo.

Yo no conozco al gato.

Todo lo sé, la vida y su archipiélago,

el mar y la ciudad incalculable,

la botánica,

el gineceo con sus extravíos,

el por y el menos de la matemática,

los embudos volcánicos del mundo,

la cáscara irreal del cocodrilo,

la bondad ignorada del bombero,

el atavismo azul del sacerdote,

pero no puedo descifrar un gato.

Mi razón resbaló en su indiferencia,

sus ojos tienen números de oro.




ODE AO GATO


(Fred)


Os animais foram

imperfeitos,

compridos de rabo, tristes

de cabeça.

Pouco a pouco se foram

compondo,

fazendo-se paisagem,

adquirindo pintas, graça vôo.

O gato,

só o gato apareceu completo

e orgulhoso:

nasceu completamente terminado,

anda sozinho e sabe o que quer.


(Theo, antes de perder a orelhinha)

O homem quer ser peixe e pássaro,

a serpente quisera ter asas,

o cachorro é um leão desorientado,

o engenheiro quer ser poeta,

a mosca estuda para andorinha,

o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato

quer ser só gato

e todo gato é gato do bigode ao rabo,

do pressentimento à ratazana viva,

da noite até os seus olhos de ouro.

(Theo, já sem a orelhinha)


Não há unidade

como ele,

não tem

a lua nem a flor

tal contextura:

é uma coisa

só como o sol ou o topázio,

e a elástica linha em seu contorno

firme e sutil é como

a linha da proa de uma nave.

Os seus olhos amarelos

deixaram uma só

ranhura

para jogar as moedas da noite .



Oh pequeno imperador sem orbe,

conquistador sem pátria,

mínimo tigre de salão, nupcial

sultão do céu

das telhas eróticas,

o vento do amor

na intempérie

reclamas

quando passas

e pousas

quatro pés delicados

no solo,

cheirando,

desconfiando

de todo o terrestre,

porque tudo

é imundo

para o imaculado pé do gato.



Oh fera independente

da casa, arrogante

vestígio da noite,

preguiçoso, ginástico

e alheio,

profundíssimo gato,

polícia secreta

dos quartos,

insígnia

de um

desaparecido veludo,

certamente não há

enigma na tua maneira,

talvez não sejas mistério,

todo o mundo sabe de ti e pertences

ao habitante menos misterioso

talvez todos acreditem,

todos se acreditem donos,

proprietários, tios

de gato, companheiros,

colegas,

discípulos ou amigos do seu gato.



Eu não.

Eu não subscrevo.

Eu não conheço o gato.

Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,

o mar e a cidade incalculável,

a botânica

o gineceu com os seus extravios,

o pôr e o menos da matemática,

os funis vulcânicos do mundo,

a casca irreal do crocodilo,

a bondade ignorada do bombeiro,

o atavismo azul do sacerdote,

mas não posso decifrar um gato.

Minha razão resvalou na sua indiferença,

os seus olhos têm números de ouro.



Pablo Neruda foi um dos poetas mais influentes do século XX, conhecido por sua poesia apaixonada e engajada. Nascido no Chile em 1904 como Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, adotou o pseudônimo de Pablo Neruda em homenagem ao poeta tcheco Jan Neruda. Sua obra é marcada por uma profunda sensibilidade à condição humana, explorando temas como amor, natureza e justiça social. Neruda recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1971 principalmente por sua obra “Canto Geral”, um épico que celebra a América Latina e suas lutas. Sua escrita é caracterizada por uma linguagem intensa e acessível, que ressoa com leitores de diversas culturas até os dias de hoje, consolidando-o como um ícone da literatura mundial.


Fonte:

Autora: Daiana

15 de junho de 2024



Notas do blog: 

1. Não encontrei nenhuma foto de Neruda com um gato. E mais: ele amava os cães, embora tenha dedicado esse belo poema aos gatos.
2. A fotos são dos gatos da familíla do blogger.

quinta-feira, 27 de março de 2025

CITAÇÕES: USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE D. H. LAWRENCE

 


      “O falo é um volume de sangue que enche o vale de sangue da mulher. O poderoso rio de sangue masculino envolve em sua última profundidade o grande rio do sangue feminino… no entanto nenhum dos dois rompe suas comportas. É a comunhão mais perfeita… e é um dos maiores mistérios.”

 – D. H. Lawrence (1885 – 1930), apud Simone de Beauvoir, in “O Segundo Sexo”, tradução de Sérgio Milliet.

segunda-feira, 24 de março de 2025

ECONOMIA: CHINA, O SOCIALISMO DO SÉCULO XXI

 UMA BELA E IMPORTANTE OBRA SOBRE A CHINA E O SOCIALISMO




O extraordinário na China foi a construção de um setor socialista – o representante concreto do modo de produção socialista – que subordina os demais modos de produção, inclusive o capitalismo


O livro China: o socialismo do século XXI (Boitempo/FMG, 2021), de Elias Jabbour e Alberto Gabriele, é a história de uma luta – não apenas uma obra de teoria geral sobre o socialismo e uma descrição do socialismo chinês (ou “com características chinesas”), mas a crônica da acirrada luta que está, inevitavelmente, implicada nestes temas, ontem e hoje.

A formação econômico-social chinesa – isto é, a China – é composta por vários modos de produção, desde o modo de produção socialista até modos de produção pré-capitalistas (por exemplo, a pequena produção mercantil camponesa), passando pelo modo de produção capitalista.

Não entramos, aqui, porque não é necessário para esta resenha, no grau de abstração contido no conceito de modo de produção. No mundo real – isto é, na vida – esses modos de produção encontram-se em luta. O que se realiza através da vida concreta dos seres humanos. É essa expressão da luta de classes que os autores revelam na China e em sua história recente.

Por exemplo:

“Essa participação de atores capitalistas no financiamento dos GCEE [Grandes Conglomerados Empresariais Estatais], e também nas finanças dos governos locais, cria grandes contradições políticas, dentre as quais a crescente pressão interna pela liberalização da conta de capitais, o que, a nosso ver, seria um passo razoável no sentido da quebra da soberania financeira chinesa e, mais, do fortalecimento político de uma forte classe capitalista interna em oposição aos interesses gerais da sociedade chinesa – reproduzindo contradições muito presentes em países como o Brasil, onde há um alto grau de financeirização. É dessa contradição que depende muito o futuro do socialismo na China” (pp. 199-200, grifo nosso).

Isto, quanto ao futuro. Quanto ao passado, escrevem Jabbour e Gabrieli sobre a reforma nas empresas estatais:

“Houve um verdadeiro choque entre diferentes modos de produção em uma mesma formação econômico-social, colocando em xeque a própria viabilidade do socialismo no país. Se o setor estatal tivesse ‘morte súbita’, a restauração capitalista se imporia” (p. 190, grifo nosso).

Entretanto, o extraordinário na China foi a construção de um setor socialista – o representante concreto do modo de produção socialista – que subordina os demais modos de produção, inclusive o capitalismo.

Este setor socialista tem como pilares:

1) A propriedade estatal da terra (“… a principal característica da agricultura chinesa não é a produção orientada para o mercado, mas sim a predominância da propriedade estatal da terra” – p. 159).

2) As empresas rurais (estatais, cooperativas e privadas), formadas desde a instituição dos contratos de responsabilidade com as famílias camponesas, em um esforço para substituir a pequena produção mercantil por empreendimentos mais produtivos (p. 164).

3) Os Grandes Conglomerados Empresariais Estatais (GCEE), principal base industrial da China, “coração da formação econômico-social” chinesa.

4) Um setor financeiro estatal poderoso, que tornou o país independente da financeirização imperialista, com “restrição total ao livre fluxo de capitais” (p. 198). Como dizem os autores: “Dados demonstram que 95% do endividamento chinês é em moeda nacional. (…) a soberania monetária chinesa talvez seja a maior capacidade estatal construída ao longo de quatro décadas de desenvolvimento” (p. 205, grifos nossos).

5) Do ponto de vista institucional, a ação da Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (sigla em inglês: Sasac) como gerente (“manager”) do setor socialista.

6) Um setor de comércio exterior como “instituição pública, planificada e de Estado” (p. 212).

Há outro elemento – este tão decisivo que preferimos colocá-lo à parte, porque está acima dos anteriores: a direção do Partido Comunista da China (PCCh) sobre a economia e o Estado chinês.

Partido Comunista da China

Jabbour e Gabriele delineiam um setor socialista orientado para o mercado, que leva em consideração e atua de acordo com a lei do valor. Aliás, é inteiramente correto considerar que a lei do valor não é própria somente do capitalismo. A questão, aqui, é a existência da mercadoria – inclusive sua persistência (ou não) no socialismo.

Não é uma questão nova na teoria marxista, de forma explícita ou subjacente, desde a Crítica do Programa de Gotha (1875), do próprio Marx, até Problemas Econômicos do Socialismo na URSS (1952), de Stalin, passando por alguns trechos do Anti-Dühring (1878), de Engels, e O Estado e a Revolução (1918), de Lenin. Por fim, esse também é o fundo dos artigos de Che Guevara reunidos em Temas Economicos (La Habana, 1988) e as suas anotações ao Manual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS (v. HP 08/10/2020, Apontamentos de Che sobre um livro famoso).

Os chineses construíram um setor socialista orientado para o mercado. Mais do que isso, utilizaram o capitalismo como modo de produção auxiliar do socialismo. Apesar da existência de um setor privado, razoavelmente grande, não impedir que este sirva de apoio ao setor estatal, socialista, da economia, claro que isso implicou – e implica –, também, numa luta entre os dois modos de produção (além de outros).

O que tem uma consequência, do ponto de vista da lei do valor, que não escapa aos autores:

“… a própria existência, hoje, de um setor socialista na economia sob a forma de GCEE e de um sistema financeiro nacional estatal – além de uma série de formas de controle direto e indireto do Estado sobre a economia – é um instrumento que restringe potencialmente a ação da lei do valor” (p. 180, grifo nosso).

Aqui, chamamos a atenção do leitor para o advérbio “potencialmente”. Em suma, apesar da economia chinesa estar submetida à lei do valor e estar orientada para o mercado, o setor socialista é um limite (pelo menos, “potencial”) à sua livre ação.

Nesse sentido, esse limite, ainda que sob a luta a que nos referimos, vem se consolidando nos últimos anos:

“Orientada para o mercado, anabolizada por uma soberania monetária única, a atual conjuntura das relações intrassetoriais da economia chinesa é comumente referida como um organismo no qual o setor estatal avança e o setor privado recua” (p. 193, grifo nosso).

No núcleo do setor socialista, não apenas o setor privado, mas o próprio mercado, apontam os autores, é um instrumento auxiliar:

“Nas grandes empresas estatais, priorizou-se a utilização do mercado como instrumento auxiliar , e não como o principal” (p. 218).

O livro, porém, não esconde, honestamente, os problemas e vicissitudes, hoje em processo de resolução. Por exemplo, se o que citamos acima foi verdade – e é verdade – para as grandes empresas estatais, foi diferente nas pequenas e médias empresas do Estado:

“… houve muitas influências neoliberais no processo de privatização em massa de pequenas e médias empresas estatais chinesas na década de 1990” (p. 218).

Entretanto, não houve, na China, após as reformas de 1978 – e após as mudanças instituídas em 1992 – nada parecido com a privatização na antiga URSS e no Leste europeu, que levaram à morte milhões de pessoas e à ruína daquelas economias. A transição que houve na China foi alicerçada naquilo que fora já construído no período anterior e “pode ser considerado uma forma oposta aos programas de privatização em massa que ocorreram nos países do antigo bloco socialista” (p. 183).

Ex-presidente chinês Deng Xiaoping, responsável pelas reformas de 1978

Acrescentemos aqui, de passagem, que o espetacular crescimento chinês não se deveu ao capital estrangeiro, nem sob a forma de IEC (Investimento Estrangeiro em Carteira – ou seja, dinheiro estrangeiro no mercado financeiro) ou IED (Investimento Estrangeiro Direto – ou seja, em empresas).

“Não se conclua, porém, que a China cresceu com base na política de crescimento com endividamento externo. Entre 1980 e 2018, o país só apresentou déficit em conta corrente (ou seja, usou sua poupança externa) em três anos. A China não cometeu o erro de tentar crescer com poupança externa, assim evitou que a taxa de câmbio se apreciasse e as empresas nacionais perdessem competitividade” (p. 145, grifo nosso).

Nós, aqui no Brasil, conhecemos muito bem esse erro e suas consequências…

Na China, pelo contrário, houve “um processo vigoroso de substituição de importações e de forte empuxe das exportações” (idem).

O que é rigorosamente verdadeiro e coerente com o “fortalecimento da demanda doméstica” (p. 150, grifo nosso) a partir de 1997. Correlacionado com isso, e para frisar a condição de um preço da economia e de um termômetro – que, no Brasil, são martelados pela reação na sua tentativa de nos manter em uma camisa de força:

“… os juros reais, reagindo ao aumento de oferta de moeda e refletindo a estratégia de mudança do drive de investimento para consumo, caíram de 7,2% a.a. em média em 1997-1999 para 2,1% a.a. em 2000-2018. A inflação, medida pelo índice de preços ao consumidor, após o repique em 1993-1995 com taxa média de 18,6% a.a. mantém-se em patamares baixos desde o fim da década de 1990, com média de 1,9% em 1997-2017” (p. 146).

Jabbour e Gabrieli definem a economia chinesa como “socialismo de mercado”, mas delineiam uma fase superior do socialismo de mercado, a qual chamam “nova economia do projetamento”, em alusão ao colocado por Ignácio Rangel em seu livro Elementos de Economia do Projetamento.

Porém, em que condições existe o socialismo de mercado?

Sucintamente, numa situação em que o modo de produção capitalista ainda é dominante mundialmente; em que as exportações chinesas têm que ser comerciadas no mercado capitalista; em que, portanto, a lei do valor e o mercado subsistem em geral.

Os autores trabalham com o conceito de “metamodo de produção”, sendo este algo que vai além do capitalismo e do socialismo – mas impõe um limite ao modo de produção socialista dentro de uma determinada formação econômico-social (como a China), entre eles a lei do valor e o mercado.

Esta situação, no entanto, não é estática nem eterna. No seu delineamento de um estágio superior do socialismo de mercado, a “nova economia do projetamento”, é dito:

“Neste século, as políticas industriais chinesas tornam-se mais proativas no que concerne à produção de inovações endógenas, buscando constantemente o estado da arte em matéria de desenvolvimento técnico. É essa natureza proativa que abre espaço para o projeto como provável sucessor do mercado enquanto núcleo do funcionamento da economia” (p. 238, grifo nosso).

Ou seja, ainda que mantida a orientação para o mercado, este torna-se secundário, em relação ao projeto, como motor econômico.

Mais adiante:

“A face do organismo econômico chinês avança a passos largos para patamares superiores de produção e produtividade. A nosso ver, mudam também as problemáticas da planificação, que deve se adequar a uma economia centrada no projeto, e não mais no mercado em si” (p. 239, grifo nosso).

Não se trata, bem entendido, de uma negação do mercado. Na opinião dos autores, “respostas realistas [para a construção do socialismo], dadas as características do metamodo de produção, passam pela possibilidade ou não de a planificação ser compatível com o mercado”, considerando uma “lei de funcionamento das formações econômico-sociais de orientação socialista a impossibilidade de superar a lei do valor sob o socialismo” (p. 248, grifo nosso).

Trata-se, colocada de modo geral, de uma discussão (v., por exemplo, Claudio Campos, A História Continua, 2ª ed., Fundação Instituto Claudio Campos, 2015, pp. 57 e segs.).

Mas essa discussão não pode fazer com que a construção do socialismo na China, com as características descritas por Jabbour e Gabriele, sejam ignoradas, o que seria, aliás, uma aberração.

É verdade, os soviéticos, sob cerco e, inclusive, com a invasão mais brutal e sangrenta que o mundo já conhecera, não tiveram a mesma oportunidade que os chineses.

No início da década de 50, Stalin, no livro que citamos acima, constatou que o mercado e a lei do valor existiam na URSS – ainda que sob restrição do setor estatal da economia e da planificação.

Mas a URSS jamais pôde existir dentro do mesmo mercado que os EUA, exceto tangencialmente. Foi obrigada a resistir ao cerco imperialista – a vários cercos imperialistas – em oposição completa à esfera de influência econômica e política dos países capitalistas centrais.

Assim, as condições eram outras. Mas não apenas as condições, pois a capacidade do PCCh de deduzir outra política dessas outras condições não foi algo espontâneo nem demandou pouco esforço.

Por fim, os sacrifícios que isso exigiu dos chineses. Jabbour e Gabrieli se referem a isso em vários trechos de seu livro, a começar pelo desmonte das comunas rurais e da respectiva estrutura de assistência social.

Nas cidades, o processo teve, por esse lado, ainda maior dificuldade:

“As empresas estatais passaram a se ocupar única e exclusivamente de sua agenda nuclear – o que na prática significou o fim do sistema danwei, isto é, a concentração de todos os encargos sociais nas empresas. Uma década de aprofundamento de desigualdades entre as diferentes regiões, e entre as classes sociais, teve custos sociais e políticos imensos e apenas recentemente começou a ser revertida” (p. 252, grifo nosso).

Porém, as reformas econômicas “fizeram o setor privado crescer de forma quantitativa, enquanto a participação do Estado cresceu de forma qualitativa” (p. 253).

Do ponto de vista da política econômica, isto significa que o desenvolvimento colossal do setor produtivo chinês permite agora – e já vem permitindo – uma transferência de recursos para o setor improdutivo (saúde, educação, previdência social, em suma, o bem-estar geral da população).

Esta é uma questão que já fora sublinhada pelo Che em sua conferência no Uruguai (v. HP 08/10/2021, Che: “o desenvolvimento é dado pela industrialização”).

A primeira parte do livro de Jabbour e Gabriele é uma teorização geral sobre o socialismo, diga-se de passagem, muito interessante.

Pelas limitações de uma resenha para jornal, focamos na segunda parte, que é a análise do processo chinês.

Apesar disso, tocamos em algumas questões – como a lei do valor, a possibilidade de utilização do mercado na construção do socialismo, a existência do capitalismo mesmo sob o socialismo, com a constituição de uma formação econômico-social complexa.

Deixamos de lado as considerações dos autores sobre o modo de produção comunista, embora tenhamos uma opinião sobre o assunto.

Mas essa opinião não é essencial para a leitura do livro de Jabbour e Gabrieli – nem a polêmica em torno do tema nos parece importante no contexto da obra.

Além disso, abordar a questão exigiria muito mais do que o tamanho e as pretensões deste artigo…

Preferimos, portanto, recomendar ao leitor a fruição prazerosa (existe fruição que não seja prazerosa?) do livro.

Até porque, além de prazerosa, ela será muito útil a quem pretenda conhecer a China, o socialismo atual – e o mundo de hoje.


Fonte:

Autor: Carlos Lopes

Redator-chefe do jornal Hora do Povo e vice-presidente nacional do PCdoB



sexta-feira, 21 de março de 2025

CITAÇÕES: USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE FRIEDRICH ENGELS:

 


      “As condições sob as quais os homens produzem e trocam mudam de país para país e, em cada país, de geração para geração. A economia política não pode, portanto, ser a mesma para todos os países nem a mesma para todas as épocas históricas”. 

– Friedrich Engels, in “Anti-Dühring”, 1878; apud Elias Jabbour e Alberto Gabriele in “China: o Socialismo do Século XXI”, 2021.

terça-feira, 18 de março de 2025

FEMINISMO: O FEMINISMO RADICAL DE VALERIE SOLANAS

 SCUM: O MANIFESTO POLÊMICO DE VALERIE SOLANAS QUE IMAGINOU UMA SOCIEDADE EXTINTA DE HOMENS


A intelectual tinha episódios de depressão, foi presa por tentar matar Andy Warhol e escreveu um manifesto pedindo a destruição do sexo masculino


A artista Valerie Solanas em 1967 

 
Valerie Solanas teve uma vida conturbada desde criança, quando afirmava com frequência os abusos sexuais que sofria nas mãos do pai. Aos 11 anos, seus pais se separaram e a garota passou a morar com sua mãe em Washington. A menina se enganou ao pensar que teria uma vida melhor. Pouco tempo depois, sua mãe casou-se novamente, o que fez com que sua filha se rebelasse contra ela.

Logo, seus problemas familiares ganharam espaço em sua vida escolar. Valerie bateu em um menino e em uma freira, escrevia frases impróprias às crianças e, devido a esse comportamento, passou a morar com seu avô em 1949. Mais uma vez, Solanas não teve sorte, já que seu parente era alcoólatra e a agredia constantemente.

Aos 15 anos, foi expulsa de casa. Entretanto, a garota continuou com seus estudos e se formou na Universidade de Maryland, no curso de psicologia. Como trabalho, ela encontrou um modo de dar conselhos sobre como combater um homem, e seus programas podiam ser ouvidos em uma rádio.

Mesmo com a cultura conservadora da época, Solanas não escondeu seu interesse sexual por mulheres. Em 1950, ela publicou dois artigos sobre psicologia e mudou-se para Berkeley, onde assistiu outros cursos e, mais tarde, começou a escrever seu manifesto.

Nos anos 60, Valerie manteve sua sustentação baseada na prostituição e viajou para Greenwith Village, foi quando começou a escrever artigos autobiográficos sobre uma mendiga e prostituta que odiava os homens, intitulado A Young Girl’s Primer e How to Attain the Leisure Class. Além disso, a intelectual produziu uma peça de teatro sobre o mesmo tema.

Já em 1967, a escritora encontrou-se com Andy Warhol pela primeira vez e lhe pediu para conduzir sua peça. Ele ficou surpreso com o título e decidiu ficar com o roteiro para fazer uma revisão, mas nunca foi devolvido. Como desculpa, o então produtor afirmou que havia perdido os papéis e ofereceu a Solanas um papel em seu filme intitulado I, A Man.

Ela dominou o diálogo do filme e fez uma aparição notável. Porém, em seu livro, Andy escreveu que a considerava uma pessoa muito interessante, mas que o ameaçava constantemente e, por isso, decidiu se afastar da moça.



A criação do Society for Cutting Up Men Manifesto (SCUM)



Ainda em 1967, Valerie publicou o SCUM Manifesto, seu trabalho mais conhecido. Trata-se de um livro que aborda a destruição dos homens e a libertação das mulheres. Com essa realização, a mulher ganhou diversas simpatizantes feministas que enxergaram seu texto como provocativo, reflexivo e determinava um chamado a ação.

O manifesto seria publicado pela editora que era propriedade de Maurice Girodias, a Olympia Press. No contrato realizado, o editor solicitou a artista que suas próximas obras também pertenceriam a ele. Dessa maneira, ela entendeu que o homem possuiria todos os seus trabalhos.

Como continuação do manifesto, a escritora pretendia dar vida a um romance, mas acreditava que estava sendo vítima de uma conspiração de Warhol e Gorodias. Na mesma época, ela foi até Paul Krassner e pediu-lhe dinheiro, e afirmou que tinha a intenção de atirar no proprietário da Olympia Press. Com o dinheiro em mãos, Valerie comprou uma pistola calibre 32.



A tentativa de assassinato



Em 1968, Solanas foi até o Hotel Chelsea, local que Girodias morava, não o encontrou e foi até o estúdio The Factory, onde esperou por Warhol. Foi quando ela escondeu a arma e pegou o mesmo elevador que ele. Valerie ergueu o objeto e atirou três vezes no homem, mas acertou apenas uma.


Andy Warhol, uma de suas vítimas / Crédito: Wikimedia Commons


Após isso, ela atirou no crítico de arte Mario Amaya e tentou ferir Fred Hughes, mas sua arma parou de funcionar. Foi então que ele a sugeriu que deixasse o prédio. Mesmo com dificuldades, Warhol sobreviveu, mas nunca se recuperou por completo.

Na mesma tarde, a escritora se entregou à polícia e foi acusada por seus crimes. Em seu depoimento, afirmou que Warhol tinha muito controle sobre sua vida e que desejava roubar seus trabalhos.

Após o relato, ela se declarou culpada pela tentativa de assassinato e passou três anos em um hospital psiquiátrico, onde foi diagnosticada com esquizofrenia e depressão. Mesmo com o ocorrido, Andy recusou-se a testemunhar contra Solanas, mas passou grande parte da sua vida com medo de que o evento se repetisse.

Em 1971, Valerie foi libertada, mas presa no mesmo ano devido a cartas ameaçadoras que enviou a diversas pessoas, inclusive a Warhol. Em seus últimos anos, a artista enfrentou mais crises de depressão e ficou por muito tempo no hospital psiquiátrico.

Ela foi libertada novamente seis anos depois e, em abril de 1988, aos 52 anos, faleceu de enfisema pulmonar e pneumonia. Sua peça de teatro foi encontrada somente após 30 anos e, em 2000, estreou em São Francisco.


Fonte:

Autoria: Nicoli Raveli

Publicado em 19/03/2020