sábado, 30 de agosto de 2025

CITAÇÕES: USE COMO EPÍGRAFE ESTE TEXTO DE AILTON KRENAK:

 


     "O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso. O mundo possível que a gente pode compartilhar não tem que ser um inferno, pode ser bom. Eles ficam horrorizados com isso, e dizem que somos preguiçosos, que não quisemos nos civilizar. Como se 'civilizar-se' fosse um destino. Isso é uma religião lá deles: a religião da civilização. Mudam de repertório, mas repetem a dança, e a coreografia é a mesma: um pisar duro sobre a terra. A nossa é pisar leve, bem leve." 

(Ailton Krenak - in: "A Vida Não é Útil")

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

ÁRVORE: PAU-BRASIL

 



CONHEÇA A HISTÓRIA E UTILIZAÇÃO DO FAMOSO PAU-BRASIL


De grande valor histórico e cultural para o país, o pau-brasil é considerado um símbolo nacional.

Tronco de pau-brasil, Horto em Taubaté

O pau-brasil é uma árvore nativa da Mata Atlântica brasileira, que foi amplamente explorada durante a colonização do Brasil pelos portugueses, devido à sua madeira de alta qualidade e cor avermelhada única. Hoje em dia, o cultivo do pau-brasil é uma prática importante para a conservação da espécie e para a preservação da biodiversidade da Mata Atlântica.

pau-brasil

O cultivo do pau-brasil pode ser realizado através de sementes ou de estacas. As sementes devem ser coletadas de frutos maduros e sadios, e então plantadas em solo fértil e bem drenado. As estacas, por sua vez, devem ser retiradas de galhos saudáveis e plantadas em substrato úmido e bem adubado.


pau-brasil na mata Atlantica do Rio de Janeiro: 
foto de Ricardo Cardim

O pau-brasil é uma árvore de crescimento lento, que pode levar até 30 anos para atingir a maturidade. Quando adulta, pode chegar a medir até 30 metros de altura e ter um diâmetro de tronco de até 80 centímetros. A madeira do pau-brasil é conhecida por sua durabilidade, resistência e beleza, sendo utilizada na produção de móveis finos, instrumentos musicais, cabos de ferramentas, construções e artesanatos.

Além da madeira, o pau-brasil possui outras utilidades. A casca da árvore pode ser usada na produção de medicamentos para tratar infecções respiratórias, febres e inflamações. As folhas do pau-brasil também possuem propriedades medicinais e podem ser utilizadas na produção de chás e extratos para combater a diabetes e outras doenças.

Além disso, o pau-brasil tem grande valor histórico e cultural para o Brasil, sendo considerado um símbolo nacional. A árvore é lembrada por ter dado nome ao país, devido à sua cor vermelha, que lembra o tom da brasa. Hoje em dia, o cultivo do pau-brasil é incentivado como uma prática de conservação da biodiversidade e de preservação da cultura brasileira.

Exemplar de pau-brasil fotografado durante visitas noturna guiada 
pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Foto de Fernando Frazão /AGÊNCIA BRASIL

A medida foi tomada depois que a espécie entrou oficialmente na lista de árvores ameaçadas de extinção. Hoje, o pau-brasil encontra-se protegido por lei e seu uso é permitido apenas mediante esse projeto de preservação.



CONHEÇA 6 CURIOSIDADES 
SOBRE A ÁRVORE QUE É SÍMBOLO NACIONAL

“A história do Brasil está intimamente ligada com essa árvore'', disse o engenheiro agrônomo Yuri Tavares Rocha, doutor em geografia e professor da Universidade de São Paulo (USP) em entrevista à reportagem.

1. Pau-brasil significa “vermelho como brasa” e seu nome em tupi é Ibirapitanga

Durante os primeiros anos da ocupação portuguesa, muitas espécies animais e vegetais chamaram a atenção por não existirem na Europa, como a arara e o papagaio, por exemplo. E o pau-brasil estava entre elas desde o princípio, por conta de seu interior avermelhado.

“Os portugueses já conheciam uma árvore de madeira vermelha do mesmo gênero da C. echinata, mas de origem asiática, chamada de bresil ou bersil. Com a descoberta da espécie americana, ela também passou a ser chamada assim”, diz Tavares Rocha.

“Bresil”, segundo Rocha, quer dizer “vermelho como brasa”, fazendo uma referência ao vermelho presente no interior do tronco do pau-brasil. “Vale ressaltar que os povos originários, que já habitavam o território, ajudaram os portugueses a encontrar essas as árvores. Eles também a chamavam de ‘Ibirapitanga’ que significa ‘madeira vermelha’ na língua tupi”, acrescenta o professor.

Usado para a produção de um corante natural para tecidos, os troncos vermelhos das novas terras da América logo se tornaram um item cobiçado no mercado europeu. “A exploração do pau-brasil foi a primeira motivação da ocupação portuguesa e trazia benefícios para os comerciantes. Era mais fácil de transportar do que as árvores da Ásia e o pigmento extraído apresentava maior qualidade.”

Bosque de pau-brasil localizado na Estação Ecológica do Tapacurá, 
em Pernambuco.
Foto de Yuri Tavares Rocha

Rocha estima que cerca de 500 mil toras de pau-brasil foram enviadas à Europa entre os séculos 16 e 19. Mas esse número pode ser ainda maior.

“É uma estimativa subestimada porque a árvore não foi explorada apenas pelos portugueses. Franceses, holandeses, espanhóis e ingleses também participaram desse comércio, nem sempre de forma legal, muito menos registrada.”

2. Um país com nome de árvore: como o pau-brasil nomeou um imenso território

Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e Terra dos Papagaios foram alguns dos nomes pelos quais a colônia portuguesa no então “novo continente” já foi conhecida.

Entretanto, chegavam cada vez mais naus carregadas de quantidades significantes de “bresil” em Portugal e, aos poucos, a relevância comercial acabou por influenciar o nome de seu território de origem. “Apesar do nome de batismo da colônia ser Santa Cruz, era comum se referir a quem trabalhava com o pau-brasil de ‘brasileiros’ e o lugar de onde a madeira vinha de ‘terra do brasil’”, conta Rocha.

“O nome também foi muito influenciado pela cartografia da época”, afirma Rocha. Segundo este mesmo artigo de 2001, os mapas europeus, naquele momento, nomeavam o lugar geográfico já como “Brasil” ou variantes como Bracir, Bracil, Brazille, Bersil, Braxili, Braxill, Bresilge.

“Os mapas representavam o território da colônia portuguesa com iluminuras (desenhos) que faziam a alusão da exploração da madeira, mostrando o tronco vermelho cortado. E, aos poucos, a colônia era mais conhecida como Brasil do que Santa Cruz”, diz Rocha.

3. Pau-brasil: símbolo de status nas roupas e de qualidade na música

tintureiros


O tamanho da influência do comércio do pau-brasil no primeiro período da colonização do Brasil pode ser explicado, segundo Rocha, pela importância do subproduto que a madeira originava: o corante vermelho.

A tintura vermelha era uma cor difícil de ser obtida, o que fazia dela um sinal de luxo. “Roupas vermelhas eram sinal de status social. O vermelho era usado por representantes do alto-clero, nobres e grandes mercadores ricos, por exemplo.”

O protagonismo do pau-brasil como matéria prima para o corante seguiu até meados do século 18 e início do século 19, quando foram desenvolvidos os primeiros corantes sintéticos. “O que aumentou e facilitou o acesso à essa tintura, derrubando a demanda pela madeira”, afirma Rocha.

Além da extração do pigmento, Rocha diz que a qualidade da madeira do pau-brasil também servia para outros fins, como a construção de móveis e decorações, principalmente para igrejas. “É uma madeira muito resistente e durável. Até hoje é possível encontrar decorações e móveis em igrejas europeias talhados em pau-brasil”, diz Rocha. Mas não espere ver um brilho vermelho nesses itens. “Ela vai ficando mais marrom com o tempo, perdendo a cor característica”.



Outro uso para o pau-brasil era na produção de instrumentos musicais. “Estudiosos da música dizem que a madeira do pau-brasil gera uma das melhores reverberações quando usada para confeccionar arcos de instrumentos de corda, como violinos, diz Rocha. Segundo ele, um arco de violino feito de pau-brasil pode chegar a custar mais de 2 mil dólares.

4. O pau-brasil é considerado a árvore nacional

Em 1961, o Ministério da Agricultura do Brasil apresentou um anteprojeto de lei ao então presidente da República, Jânio Quadros, que declararia o pau-brasil como árvore nacional.

O Ministério alegava que o mundo inteiro reconhecia o Brasil por sua flora exuberante e, portanto, seria conveniente que o país declarasse a espécie que representasse o país.

O pedido se tornou o Projeto de Lei 3380/1961, que declarou, oficialmente, o pau-brasil como a árvore nacional brasileira. Além dele, o PL também declara a flor do ipê-amarelo como flor nacional.

Flores do pau-brasil.
Foto de Yuri Tavares Rocha


5. Onde estão as árvores de pau-brasil hoje

Depois de séculos de exploração predatória, em conjunto com o desmatamento da Mata Atlântica, o pau-brasil chegou próximo à extinção. “No século 20 ele chegou a ser considerado extinto. Até ser redescoberto por populações nativas em Pernambuco, em 1928”, relata Rocha.

“Atualmente, ainda é possível encontrar populações nativas de pau-brasil no Nordeste brasileiro, principalmente no Parque das Dunas, em Natal, além do sul de Alagoas, do norte da Paraíba e em fragmentos da costa de Pernambuco”, diz Rocha.


Entretanto, não há estimativas de quantos exemplares nativos sobram na Mata Atlântica. “É uma espécie difícil de ser encontrada. Seria necessária uma expedição específica para realizar essa contagem estimada em escala nacional", diz Rocha. "É um próximo passo para a preservação da espécie."

6. O pau-brasil segue ameaçado de extinção

O pau-brasil é uma das espécies na lista das ameaçadas de extinção do Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites). A organização foi criada para regular o comércio de espécies animais e vegetais ameaçadas, prevenindo-as do perigo de extinção, considerando como ameaça o comércio internacional.

“Por ser uma espécie em risco na Mata Atlântica, ela é imune de corte por conta da legislação nacional. Mas, como ainda há interesse comercial na madeira, esse comércio deve seguir regulamentos nacionais e internacionais”, diz Rocha.

Por isso, além de manchas esparsas de exemplares nativos, também é possível encontrar raras áreas comerciais regulamentadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Atualmente, a exploração do pau-brasil só pode acontecer por meio de plantio devidamente registrado no Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor) perante o órgão ambiental competente, e sua exportação depende da aprovação do Ibama.

Em julho de 2022, o Ibama instituiu diretrizes para a Estratégia Nacional de Proteção da Espécie Paubrasilia echinata (pau-brasil), as quais delimita a fiscalização – desde o plantio e estoque de empresas registradas até a comercialização final da madeira.

“É uma forma de ter certeza da origem da madeira comercializada", diz Rocha, "evitando exportações ilegais e mais danos aos poucos exemplares existentes."

O pau-brasil de mais de 600 anos:
  Indivíduo é o maior pau-brasil já documentado no país. 
Foto: Cassio Vasconcelos

Fonte:

domingo, 24 de agosto de 2025

CITAÇÕES: USE COMO EPÍGRAFE ESTA FRASE DE SÁNDOR MÁRAI:

 


     “É preciso domar-se a vingança como um leão enjaulado, é preciso alimentá-la todos os dias com uma carne sangrenta, com os bocados sangrentos das lembranças, para que ela não perca os seus apetites carnívoros”. 

Sándor Márai, in A Conversa de Bolzano; 

tradução de Miguel Serras Pereira.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

SOCIEDADE: TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

POR QUE AS PESSOAS ACREDITAM EM TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO? 
A CIÊNCIA EXPLICA



A desinformação foi a chama que acendeu a multidão que invadiu o Capitólio, nos EUA, mostrando os efeitos desastrosos que essas teorias conseguem produzir.

Os insurgentes invadiram o Capitólio dos Estados Unidos em 6 de janeiro, criando caos e desafiando os membros do legislativo que estavam reunidos para certificar os votos eleitorais. Segundo eles, a eleição presidencial foi fraudada — uma ideia defendida por um líder poderoso e de sua confiança.

“Fraudaram a eleição”, alegou mentirosamente o presidente Donald Trump naquele dia a uma multidão formada por milhares de seus apoiadores em Washington D.C. “Não se enganem, essa eleição foi roubada de vocês, de mim e do país.”


Apoiadores do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, erguem bandeira dos Estados Unidos sobre um símbolo que representa o grupo de teorias da conspiração QAnon em reunião em frente ao Capitólio do país, em 6 de janeiro de 2021, em Washington, D.C. (FOTO DE WIN MCNAMEE, GETTY IMAGES)


Mas a ideia de que a eleição foi fraudada é, por definição, uma teoria da conspiração — uma explicação dada a acontecimentos que se baseia na premissa de que pessoas que detêm o poder manipulam a sociedade de forma desonesta. Na realidade, dezenas de ações judiciais com acusações de fraude eleitoral foram rejeitadas na justiça estadual e federal. O procurador-geral William Barr disse, no mês passado, que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos não encontrou nenhuma evidência de fraude eleitoral generalizada. Até o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell — aliado republicano de Trump durante grande parte de sua presidência — declarou recentemente que algumas das alegações de Trump sobre fraude eleitoral eram “teorias da conspiração radicais”.

Trump “utiliza como arma o raciocínio motivado”, afirma Peter Ditto, psicólogo social da Universidade da Califórnia, em Irvine. Ele “incitou um motim e transformou tendências humanas naturais em arma”.

Essas tendências humanas — de acreditar no que satisfaz nossas preconcepções, verdadeiras ou não — faziam parte de nossa vida muito antes dos arruaceiros invadirem o Capitólio. E, em meio à pandemia de covid-19, a desinformação aparentemente se tornou sem limites.


A Organização Mundial da Saúde (OMS) designou o momento atual como infodêmico, quando uma infinitude de dados se mistura com mentiras, muitas vezes produzindo efeitos devastadores. Algumas pessoas incendiaram torres de telecomunicações 5G após lerem publicações nas redes sociais que alegavam que a nova tecnologia poderia causar covid-19. Uma minoria preocupante negou a existência do vírus até mesmo no momento de sua morte em decorrência da covid-19.

Especialistas afirmam que a maioria das pessoas não cai tão fácil em mentiras. Mas quando a desinformação oferece explicações simples e casuais a eventos que de outra forma seriam considerados aleatórios, “ela ajuda muitos indivíduos a restaurarem a sensação de controle e equilíbrio”, conta Sander van der Linden, psicólogo social da Universidade de Cambridge.

Hoje, a desinformação constante ao nosso redor tem como pano de fundo a pandemia em curso, uma crise de desemprego, manifestações em massa contra a violência policial e a injustiça racial, e uma eleição presidencial profundamente polarizadora. Em tempos turbulentos, explicações fornecidas por teorias da conspiração e outras mentiras podem ser ainda mais atraentes — ainda que não se consiga contê-las ou a elas resistir.

Invasão do Capitólio: em 6 de janeiro de 2021, 
o país testemunhou um episódio 
que se tornou símbolo da violência política 
— Foto: Tayfun Coskun/AA/picture alliance

O fascínio de conspirações em um mundo caótico

As pessoas utilizam atalhos cognitivos — regras basicamente inconscientes para tomar decisões de forma mais rápida — para decidir em quem irão acreditar. E aqueles que se sentem com ansiedade ou com uma sensação de desordem, ou ainda que anseiam por explicação cognitiva podem depender ainda mais desses atalhos cognitivos para dar sentido ao mundo, explica Marta Marchlewska, psicóloga social e política que estuda teorias da conspiração na Academia Polonesa de Ciências.

Uma pesquisa recente constatou que mais de 50% dos norte-americanos relataram um aumento do estresse durante a pandemia de covid-19. Em meio à inquietação, “não é surpreendente haver um aumento nas teorias da conspiração hoje”, afirmou Karen Douglas, psicóloga social da Universidade de Kent, na Inglaterra. Sua pesquisa descobriu que pessoas que se sentem inseguras em seus relacionamentos e que tendem a dramatizar problemas cotidianos são mais propensas a acreditar em teorias da conspiração.

Muitas das teorias da conspiração que atualmente circulam oferecem explicações à própria pandemia. Um estudo publicado em outubro por van der Linden e colegas apresentou a residentes dos Estados Unidos, Reino Unido, Irlanda, Espanha e México declarações que continham informações e fatos falsos comuns sobre covid-19.


Embora a grande maioria tenha identificado corretamente as informações falsas, alguns aceitaram prontamente as mentiras, incluindo entre 22% e 37% dos participantes (dependendo do país) que acreditaram na alegação de que o novo coronavírus foi desenvolvido em um laboratório em Wuhan, na China. Alguns também consideraram que informações corretas eram falsas, como o fato de que o diabetes aumenta o risco de casos graves de covid-19.

Os mesmos participantes que acreditaram nas informações falsas também eram menos propensos a declararem que cumpriam as orientações de saúde para se prevenirem contra covid-19, como utilizar máscara, assim como era provável que hesitassem em tomar a vacina. Os resultados condizem com uma série de pesquisas que demonstra que a disposição das pessoas em acreditar em notícias falsas pode produzir efeitos comportamentais mensuráveis, afirma Jan-Willem van Prooijen, psicólogo social da Universidade Livre de Amsterdã.

Os especialistas também afirmam que as pessoas têm maior probabilidade de acreditar em informações falsas se forem expostas repetidamente a elas — como alegações de fraude eleitoral ou de que a covid-19 não é mais perigosa do que a gripe comum. “O cérebro confunde familiaridade com verdade”, esclarece van der Linden.

Narcisismo coletivo

Outro fator psicológico que pode levar à aceitação de conspirações é aquilo que os especialistas denominam “narcisismo coletivo”, ou a convicção exagerada de um grupo em sua própria importância. A pesquisa de Marchlewska sugere que narcisistas coletivos costumam buscar inimigos imaginários e aceitam explicações de conspirações que os culpem.

Esse anseio se sobressalta especialmente quando os narcisistas ou membros de seu grupo fracassam. “Para algumas pessoas, as crenças conspiratórias são a melhor maneira de enfrentar a ameaça psicológica representada por seu fracasso”, ressalta Marchlewska, acrescentando que esse fenômeno provavelmente estava ocorrendo quando os invasores adentraram o Capitólio.

A imprensa é percebida como um inimigo e é frequentemente atacada pelo presidente Trump e seus apoiadores. “A imprensa é nosso maior problema, a meu ver”, disse Trump a seus apoiadores em 6 de janeiro, antes de marcharem ao Capitólio. Durante a confusão que se sucedeu, alguns desses apoiadores quebraram equipamentos de equipes de imprensa, amarraram o cabo de uma câmera em formato de forca e escreveram “morte à imprensa” em uma porta no prédio do Capitólio.

Ao apontar um adversário dotado de “qualidades que representam sua própria visão culturalmente deturpada do mal”, as pessoas acessam uma sensação de controle sobre o que lhes acontece, observa Daniel Sullivan, psicólogo da Universidade do Arizona que estuda como as pessoas lidam com momentos adversos na vida.


As pessoas ainda podem defender pontos de vista de grupos aos quais pertençam em um nível ainda mais instintivo. Nós, seres humanos, evoluímos em grupos que competiam entre si, moldando nossas mentes para sermos cautelosos com estranhos e leais às nossas facções, explica Ditto. Seu estudo de 2019 concluiu que esse tipo de predisposição “é uma característica natural e quase indelével da cognição humana”.

“Acredito que seja tentador considerar esse tipo de situação como um fenômeno clínico — há algo de estranho com aquelas pessoas”, comenta Ditto. “Mas o ambiente social pode produzir um efeito enorme se alguém estiver em um grupo que acredita em algo ou é louco por algo.”

Siga o líder


Embora os grupos geralmente compartilhem crenças comuns, essas crenças normalmente são determinadas por algumas poucas pessoas influentes. Uma pesquisa de outubro com mais de dois mil norte-americanos, realizada por Joseph Uscinski, professor associado de ciências políticas da Universidade de Miami, concluiu que havia uma estreita correlação entre o que as pessoas acreditavam e o que lhes havia sido contado por seus líderes políticos. Por exemplo, 56% das pessoas que se identificaram como democratas concordaram que havia uma conspiração para impedir que os serviços postais dos Estados Unidos processassem cédulas postadas, em comparação com apenas 31% dos republicanos.

Pessoas “que acreditam em teorias da conspiração geralmente procuram um salvador — alguém que proteja seu grupo fechado de inimigos conspiradores”, afirma Marchlewska. Ela cita como exemplo o QAnon, grupo disseminador de uma teoria da conspiração pela Internet que alega falsamente que um grupo poderoso de pedófilos satânicos está conspirando contra o presidente Trump (Marjorie Taylor Greene, apoiadora do QAnon, foi eleita recentemente para uma cadeira na Câmara na Geórgia).

“Não há dúvida de que as teorias da conspiração e a desinformação foram exploradas por figuras poderosas com o passar do tempo”, conta Marchlewska. “Elas servem como uma arma política extremamente perigosa, ajudando a manipular a população para conquistar o poder. Primeiro se buscam inimigos imaginários, depois as pessoas se preparam para uma luta. O estágio final geralmente é trágico: inocentes são feridos.”

Identificando a verdade

Depois que se passa a acreditar em algo, pode ser quase impossível dissuadir alguém de suas crenças. Emily Thorson, cientista política da Universidade de Syracuse refere-se a esse fenômeno psicológico como ecos de crenças — uma “resposta obsessiva e emocional a informações, que pode se perpetuar até mesmo após a constatação de que são falsas”.

Quando informações falsas são cobertas na imprensa — geralmente na tentativa de refutar mentiras — a cobertura pode ajudar inadvertidamente a criar familiaridade com crenças incorretas. Um estudo recente concluiu que isso era especialmente válido em meio à pandemia de covid-19, já que as reportagens da imprensa muitas vezes colocam nos holofotes as vozes daqueles que “defendem curas não comprovadas, negam conhecimentos científicos sobre a natureza e as origens do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e propõem teorias de conspiração com a pretensão de explicar seu nexo causal e que muitas vezes alegam a existência de intenções distorcidas”.


Mas os especialistas afirmam que a conscientização sobre as formas de disseminação de informações falsas pode fazer a diferença. Em uma pesquisa recente, van der Linden analisou se o fato de alertar as pessoas, de forma preventiva, sobre as técnicas exploradas para propagar mentiras poderia ajudá-las a ficar imunes às notícias falsas. Ele concluiu que, uma vez alertados sobre as técnicas comuns de desinformação — como apelar para as emoções ou expressar urgência em uma mensagem — os participantes tinham maior probabilidade de identificar informações não confiáveis.

Alterar a frequência de exposição a informações falsas também pode produzir algum efeito. As plataformas de redes sociais, nas quais a desinformação pode se espalhar rapidamente, estão começando a remover publicações não confiáveis. Um estudo de 2019 concluiu que as pessoas confiam mais em fontes de notícias tradicionais do que em sites hiperpartidários ou falsos, o que significa que as plataformas de redes sociais podem ajudar caso priorizem publicações de fontes confiáveis, segundo os especialistas.

Quando se trata de desinformação sobre a pandemia de covid-19, os relacionamentos pessoais com médicos e outros especialistas em saúde podem desempenhar um papel crucial. Em um estudo publicado em setembro, Valerie Earnshaw, psicóloga social da Universidade de Delaware, constatou que crédulos em teorias de conspiração sobre a pandemia eram menos propensos a afirmar que se vacinariam contra a covid-19 — mas 90% dos participantes disseram que confiavam em seus médicos. A descoberta se soma às pesquisas existentes que demonstram que os médicos podem ajudar a impedir diretamente a disseminação de informações falsas sobre a saúde.

Quanto a convencer as pessoas de que não houve fraude na eleição, “a solução mais provável seria os líderes republicanos e outras elites confiadas pelos apoiadores de Donald Trump se manifestarem e deixarem claro que não concordam com ele”, afirma Joseph A. Vitriol, psicólogo social e político da Universidade de Stony Brook, em Nova York.

Mas, de forma geral, segundo Vitriol, a sociedade pode se beneficiar da ideia de que não há problema em estar errado.

“As pessoas não gostam de se sentir alienadas e, muitas vezes, sentem-se obrigadas a formar opiniões sobre algo que não entendem”, conta ele. Para incentivar as pessoas a abandonar convicções falsas, devemos promover a ideia de que “mudar de opinião diante de novas informações é algo sensato a ser feito”.


FONTE:

Autoria: JILLIAN KRAMER

13 DE JAN. DE 2021




segunda-feira, 18 de agosto de 2025

CITAÇÕES: USE COMO EPÍGRAFE ESTE TEXTO DE CAROLINA MARIA DE JESUS

 


A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”

– Carolina Maria de Jesus, em “Quarto de despejo”. 

São Paulo: Francisco Alves, 1960, p. 160.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

LIVRO: POR QUE NÓS DORMIMOS (RESENHA)

POR QUE NÓS DORMIMOS

(Andre Favory: una mujer dormida junto a la ventana)

Quando pensamos em receitas para uma boa saúde e longevidade, geralmente incluímos boa dieta e prática de exercícios. Mas eis que Matthew Walker, pesquisador da Universidade da Califórnia, argumenta muito bem que esta duplinha deveria ser, na verdade, um trio: dieta, exercícios e sono. (Sempre esquecemos da importância do sono, não é mesmo?) Pois Matthew Walker argumenta de maneira clara e objetiva pelas páginas de seu livro “Why We Sleep” (“Por que nós dormimos” em português) por que nós dormimos e por que precisamos dormir bem. É, afinal, um livro inteiro sobre sono – e sonhos.

(Why we sleep - de Mathew Walker 
- Por que nós dormimos)

(Li o livro na versão em inglês, portanto citações serão no original com minha tradução.)


Missão: dormir

Logo na introdução, Walker estabelece uma regra bem particular para a leitura de seu livro.

“Should you feel drowsy and fall asleep while reading the book, unlike most authors, I will not be disheartened. Indeed (…) I am actively going to encourage that kind of behavior from you. (…) So please feel free to ebb and flow into and out of consciousness during this entire book. I will take absolutely no offense. On the contrary, I will be delighted.”

“Caso você se sinta embriagado e caia de sono enquanto lê este livro, ao contrário da maioria dos autores, não ficarei chateado. (…) Aliás, vou encorajá-lo a este tipo de comportamento. (…) Então, por favor, sinta-se à vontade para entrar e sair de sua consciência por todo o livro. Não ficarei em nada ofendido. Pelo contrário, ficarei encantado.”

Com este simpático aviso, Walker já expõe o objetivo maior do livro: fazê-lo dormir (bem). E, pelo menos para mim, seu objetivo foi alcançado. Porque ler a palavra “sono” tantas vezer no texto me deu muito sono. Como livro de cabeceira, antes de dormir, foi ideal. Afinal, não conseguia ler mais de um capítulo por noite porque o sono imperava.

Biologia do sono

(Foca monge havaiana dormindo)

Matthew Walker começa explicando evolutivamente por que nós dormimos. Explica a diferença do nosso sono para o sono dos demais animais, tanto em quantidade quanto em qualidade. Aliás, é interessantíssimo ler sobre como outros animais dormem, inclusive o que provavelmente sonham, baseado nos estudos da atividade cerebral.

O autor comenta também sobre o ciclo circadiano e suas peculiaridades, reguladas pelo hormônio melatonina. Discute a biologia do sono, desde a bioquímica até a atividade cerebral que caracteriza as diferentes fases de sono.

De bioquímica, aliás, aprendi que níveis altos de adenosina no cérebro são cruciais para iniciarem a sensação de sono. Interessantemente, a cafeína (meu vício) bloqueia o receptor de adenosina no cérebro, o que dificulta a sensação de sono. E o autor sugere parar de tomar café lá pelas 15h, para que tenhamos uma boa noite de sono.

Além disso, Matthew Walker descreve as diferenças e a importância do sono em cada uma das fases da nossa vida. Algumas questões são instigantes. Por exemplo, o autor advoca que tiramos muito do desenvolvimento normal da criatividade do adolescente ao fazê-los sair da cama cedo para a escola. Adolescentes têm seu ritmo circadiano levemente alterado para mais tarde, portanto seria mais sensato deixá-los dormir um pouco mais. Isto ajudaria no desenvolvimento adequado do cérebro deles, que ainda está em preparação para a maturidade da vida adulta.


Fases do sono

Por todo o livro fica claro que, enquanto dormimos, muita coisa acontece no cérebro e no nosso organismo. Não é um período de “descanso” apenas. É um período de reboot e consolidação da memória (e da saúde fisiológica em geral). Na primeira fase, o NREM, as informações capturadas e estocadas durante o dia são peneiradas e direcionadas. Saem da armazenagem temporária no hipocampo para a memória segura no córtex cerebral.

Já na segunda fase do sono, o REM, as memórias estabelecidas são integradas com a sua autobiografia. Ou seja, com tudo que você já viveu e guardou no cérebro desde o início de sua vida. Nós sonhamos durante o REM. E o sonho, portanto, é peça-chave deste processo de integração das memórias e emoções, além de combustível fundamental da criatividade.


Por que nós dormimos



À pergunta “por que nós dormimos”, a resposta que permeia todo o livro é “para termos saúde e vivermos mais”. Sempre com o respaldo da biologia e da neurociência, o autor realça a importância do sono ao falar sobre os distúrbios clássicos do sono, como a insônia e a narcolepsia, e sobre como o sono reforça todos os demais componentes do nosso organismo. Como dormir bem diminui as chances de desenvolvimento de câncer, diabetes, mal de Alzheimer, problemas cardiovasculares e muitas outras doenças, por fortalecer o sistema imune e endócrino.

Mas o que é dormir bem? De acordo com a cronobiologia e a neurociência do sono, é dormir pelo menos 8 horas por noite, com 5 ciclos distintos independentes de sono NREM e REM. Além disso, uma soneca depois do almoço de uns 90 minutos, tempo para um ciclo de NREM/REM, é altamente aconselhável, já que diminui em mais de 200% a chance de problemas cardiovasculares em adultos.


Soneca da tarde numa ilha tropical
A soneca da tarde não é preguiça: faz parte da nossa biologia.
E como a gente consegue dormir desta forma?



Receita para dormir bem

Walker estabelece 10 regrinhas simples e básicas para dormir bem. Não vou dar spoiler, mas já adianto que são regras bem simples. Ele é contra remédio pra dormir, a não ser quando avaliado por um médico que entenda de sono. Portanto suas dicas são sugestões de simples implementação, como tomar um banho quente antes de dormir, evitar celulares e afins no quarto, ou ter uma rotina de sono, dormindo e acordando no mesmo horário.

(E esqueça os drinks antes de dormir. O álcool é sedativo, não deixa que entremos de forma adequada em NREM devido ao tempo que leva para ser metabolizado. Aliás, Matthew Walker aconselha a beber durante o dia, não à noite.)

Sem sono

“The number of people who can survive on five hours of sleep or less without any impairment, expressed as a percent of the population, and rounded to a whole number, is zero.”

“O número de pessoas que podem sobreviver à 5 horas de sono ou menos sem nenhum prejuízo, expresso como uma porcentagem da população e arredondado, é zero.”

Mas o que mais me chamou a atenção neste livro foi a percepção do quanto a maioria das pessoas não dorme o suficiente, ou seja, são cronicamente sleep-deprived. Não por insônia, mas por pura falta de tempo.

Muita gente tem insônia e ele dedica um capítulo a esse mal do século. Mas Walker defende a ideia de que, enquanto na insônia a pessoa tem oportunidade de dormir e não tem sono, o sleep-deprivation é o estado de quando você tem sono, mas não tem oportunidade de dormir. Por exemplo, quando precisa trabalhar em diversos turnos. Ou viajar frequentemente, cruzando fusos. Ou ainda até por status, porque infelizmente a ideia de que você dorme muito ainda é associada à “preguiça” e não à saúde.

Esta percepção errônea nos prejudica não só individualmente, mas como sociedade em geral. Afinal, vivemos num ambiente em que as pessoas estão menos alertas e mais propensas a doenças graves. As razões para este estado generalizado de sleep-deprivation é que precisam ser atacadas por políticas de incentivo ao sono. Suas horas completas de sono devem ser não-negociáveis. Com dados e estudos científicos sólidos, Matthew Walker deixa claro o quanto não deixar alguém dormir suas 8 horas necessárias é um erro em todos os sentidos. Porque profissionais que dormem mais, estão melhor preparados para o trabalho, são mais inovadores/criativos e terminam por contribuir de maneira mais enriquecedora à sociedade como um todo.

Na dúvida, durma mais

Esta talvez seja a conclusão mais simples deste livro tão rico de pontos a serem discutidos mais e mais sobre a importância do sono.

“The shorter your sleep, the shorter your life.”

“Quanto menos você dorme, menos você vive.“

É incrível exatamente pela oposição clara à horrível frase que permeia muito do nosso comportamento: “dormir pra quê, vou dormir quando morrer“. Apesar das tecnicalidades de alguns parágrafos, Matthew Walker nos convence da importância do sono e nos convida a dormir mais para viver melhor. Como dorminhoca de primeira, curti o convite.

Tudo de sono sempre.



Fonte:

terça-feira, 12 de agosto de 2025

CITAÇÕES: USE COMO EPÍGRAFE ESTE TEXTO DE ADÉLIA PRADO

 


.     "Esconder-se no porão, de vez em quando, é necessidade vital. Precisamos de silêncio e solidão, e, não, apenas os poetas. Senão, corremos o perigo de nos esvairmos em som, fúria e esterilidade. O campo para que a palavra se instale para o autor e para o leitor é o campo do silêncio e da audição." 

- Adélia Prado, no jornal 'O Tempo', 16 de outubro de 2010.

sábado, 9 de agosto de 2025

CRIMES FAMOSOS: SÃO PAULO/SP - O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS

 


Na manhã do dia 2 de março de 1938, quarta feira de cinzas, o cozinheiro Pedro Adukas levantou a porta de aço do restaurante chinês, na rua Venceslau Brás, nº 13, no Centro da Capital, e encontrou quatro corpos estendidos pela casa. No salão estavam os cadáveres de dois colegas de serviço, os garçons José Kilikevicius e Severino Lindolpho Rocha, assassinados a porretadas. Alguns passos depois, encontrou o corpo de seu patrão Ho-Fong, também morto com um porrete. O cozinheiro chamou a polícia, e, antes dela chegar, ainda achou no andar superior do prédio o cadáver de Maria Akiau Fong, mulher de Ho. Ela fora esganada.

Pedro Adukas acabara de descobrir um dos mais sangrentos e famosos latrocínios da crônica policial de São Paulo: O Crime do Restaurante Chinês.

Um caibro quase circular, medindo 71,4 cm de comprimento e pesando 1,23 quilos, foi encontrado no quintal do restaurante, comprovadamente a arma utilizada.

As suspeitas iniciais recaíram sobre patrícios de Ho e Maria, funcionários e ex-funcionários. Um deles, Manoel Custódio Pinto, era garçom e o mais antigo empregado da casa. Foi ouvido várias vezes pelo delegado Pedro de Alcântara Carvalho de Oliveira, que presidiu o inquérito, e, no terceiro interrogatório, a 4 de março, mencionou o nome de Arias de Oliveira, que trabalhara durante 16 dias como ajudante de cozinha e deixara o emprego na Sexta Feira de Carnaval. Era um dos funcionários autorizados a dormir no serviço, gozando ainda da simpatia do ex-patrão. Manoel revelou aos policiais que ouvira Ho dizer, na terça feira, que Arias pedira para ser readmitido.

Arias e o Casal de vítimas

Arias que chegara a São Paulo em 1937, com 21 anos de idade, vindo de Franca, no interior do Estado, passou, então, a ser o pincipal suspeito, até porque fornecera dados errados no cartório, dizendo ser de Franca e nascido em 1 de janeiro de 1912 para fugir do Serviço Militar. Foi preso em 11 de março, e submetido a “perícia antropopsiquiátrica”, técnica utilizada pela primeira vez pela polícia paulistana para esclarecer um delito.

Para auxiliá-lo nesta tarefa, o delegado Pedro de Alcântara chamou Ricardo Gumbleton Daunt (1894-1977), chefe do Serviço de Identificação, Edmur de Aguiar Whitaker (1909-1965), médico psiquiatra, Oscar Ribeiro de Godoy, médico antropólogo, e Pedro Moncau, médico endocrinologista. Arias foi interrogado e submetido a testes por três vezes. Os resultados indicaram ser ele o assassino.

Arias continuou negando, até 19 de março quando resolveu confessar, dizendo que desde que viera de Franca, seis meses atrás, enfrentara sérias dificuldades, passou fome e nas vezes em que se alimentara, fora graças a ajuda de amigos. Brincou o Carnaval no tablado armado na Praça do Patriarca, e no último dia, dançou até as 24 hs, final do baile. Na volta cruzou a Praça da Sé, e na rua Venceslau Brás, avistou José e Severino na porta do pequeno restaurante Ôrion. Ficou ali até a chegada dos patrões e pediu para dormir.

Ho-Fong era conhecido por tratar seus funcionários com ofensas e humilhações, e havia despedido Arias na sexta-feira anterior aos crimes. Arias, sabendo que o chinês guardava dinheiro e joias em seu apartamento localizado em cima do restaurante, planejou o crime, e voltou na terça-feira ao local, pedindo para dormir (alegando não ter lugar para passar a noite), pois existia um pequeno quarto nos fundos, onde alguns funcionários moravam. Fong negou o pedido, mas um dos garçons deixou que Arias entrasse no quarto sem o conhecimento do proprietário. Neste quarto, moravam José Kilikevicius e Severino Rocha. Quando percebeu que os ex-colegas já estavam dormindo, Arias levantou-se e, no meio da noite e com um pedaço de madeira, matou os garçons com pauladas no crânio.

Ho-Fong acordou com o barulho vindo do quarto dos fundos e, ao descer as escadas, encontrou Arias no meio do caminho, dando início a uma luta corporal em que Arias sufocou o chinês e depois matou-o com da mesma forma que seus ex-colegas.

Em seguida, Arias entrou no quarto do casal e torturou a esposa de Fong para que ela revelasse o local onde estava guardado o dinheiro e as joias, mas como Maria se negasse a dizer onde estavam, estrangulou-a.

Sem obter sucesso no roubo, Arias fugiu do local e foi preso mais de um mês depois. Inicialmente alegou que não esteve no local, mas, após vários interrogatórios, alegou que só dormiu ali, fugindo para salvar sua vida.

Paulo Lauro, deputado ,1908-1983


A prisão preventiva de Arias foi decretada em 21 de maio. Levado a julgamento em 31 de março de 1939, foi absolvido porque o juri considerou que fora forçado a confessar um crime que não cometera. Inconformado, o promotor público Raphael de Oliveira Pirajá (1903-1975) apelou ao Tribunal e este por meio da Primeira Vara, em acordão de 3 de junho de 1940 anulou a decisão do juri. O segundo julgamento teve inicio em 9 de setembro de 1940 e, mais uma vez, o advogado Paulo Lauro conseguiu a absolvição do acusado. Seguiu-se novo recurso do Ministério Público, mas a Segunda Câmara Criminal, a 27 de agosto de 1942 decidiu pela confirmação do julgamento anterior.

O prefeito eleito de São Paulo, Celso Pitta, do PPB, foi o segundo negro a ocupar o cargo. O primeiro foi o advogado Paulo Lauro, que conseguiu livrar Arias de Oliveira da cadeia por duas vezes. Lauro, nascido em 19 de novembro de 1907, em Descalvado, SP, e falecido em agosto de 1983, na Capital, defendeu nos tribunais a tese de que seu cliente, negro como ele, fôra vítima de racismo e obrigado a confessar um crime que não cometera.

As técnicas usadas pela polícia para identificar o autor do Crime do Restaurante Chinês deram sustentação aos argumentos de defesa. Arias, um negro analfabeto, serviu de cobaia para o delegado Pedro de Alcântara Oliveira, da Central de Polícia, que o submeteu a uma perícia antropopsiquiátrica realizada por uma comissão que realizou três baterias de testes com o réu e o considerou culpado, tomando por base teorias em moda na época, muitas delas racistas, como a defendida pelo advogado italiano Cesare Lombroso, para quem traços fisionômicos indicam se o indivíduo tem ou não má índole. Também colheu as impressões de Arias, comparou-as aos sinais fotografados no rosto de Maria Akiau Fong e concluiu serem da mesma pessoa.

Arias não era um cliente fácil de ser defendido. Natural de Cravinhos, no Interior Paulista, onde nasceu em 10 de janeiro de 1917, ele já tinha cometido alguns delitos antes de se declarar culpado de quádruplo assassinato. Para não servir as Forças Armadas havia falsificado a identidade. Além disso trabalhou como salva vidas em São Vicente, onde acabou furtando colegas.

Adhemar de Barros e Paulo Lauro

Ao conseguir a dupla absolvição de um réu com essa ficha. Paulo Lauro ganhou notoriedade junto as elites. Anos depois, em 29 de agosto de 1947, tomou posse como prefeito de São Paulo, indicado pelo então governador Adhemar de Barros. Exerceu o cargo até 3 de fevereiro de 1949. Aquela altura, o cliente que lhe rendera fama e respeito já havia sumido do mapa.

Há várias teorias sobre esse crime. Abaixo um vídeo com algumas delas.




Fontes:

Renato Savarese e Wilson Cocchi, Matéria reproduzida parcialmente de Revista Já, 17/11/1996