QUE PROCURAM NO CÉU TODOS ESSES CEGOS?
"Les Aveugles”, Charles Baudelaire
Contemple-les, mon-âme; ils sont vraiment affreux!
Pareils aux mannequins, vaguement ridicules
Terribles, singuliers comme les sonnambules;
Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux.
Leurs yeux, d'où la divine étincelle est partie,
Comme s'ils regardaient au loin, restent levés
Au ciel; on ne les voit jamais vers les pavés
Pencher rêveusement leur tête appesantie.
Ils traversent ainsi le noir illimité,
Ce frère du silence eternel. O cité!
Pendant qu'autour de nous tu chantes, ris et beugles,
Éprise du plaisir jusqu'à l'atrocité,
Vois! je me trâine aussi! Mais, plus qu'eux hébété
Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?"
Os Cegos, trad. Ivan Junqueira
Contempla-os, ó minha alma; eles são pavorosos!
Iguais aos manequins, grotescos, singulares,
Sonâmbulos, talvez, terríveis se os olhares,
Lançando não sei de onde os globos tenebrosos.
Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,
Como se olhassem à distância, estão fincadas
No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas
Se um deles a sonhar sua cabeça inclina.
Cruzam assim o eterno escuro que os invade,
Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade!
Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu!
Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo,
Olha! também me arrasto! e, mais do que eles pasmo,
Digo: que buscam estes cegos ver no Céu?
A clássica relação que se estabeleceu ao longo do tempo entre literatura e pintura na história da arte criou uma tal situação de reciprocidade entre os meios de expressão que se torna freqüente, sobretudo em certas épocas, a existência de poemas inspirados em quadros e pinturas criadas a partir de textos, histórias e mesmo ditos populares. O soneto de Baudelaire em epígrafe parece seguir este princípio, evocando o quadro de Pieter Bruegel, o Velho, intitulado A Parábola dos Cegos, de1568.
Em seu livro Mémoires d'Aveugle, Jacques Derrida defende a hipótese de que o poema teria sido escrito a partir da tela de Bruegel: "On a proposé deux références au poème Les Aveugles.[...] La première concerne une gravure ou une lithographie d'après la toile de Bruegel l'Ancien (La parabole des aveugles du Musée de Naples dont le Louvre aurait acquis une copie en 1893)". Lucia Vaina-Pusca, por sua vez, explora o tema num ensaio: "La théorie des mondes possibles dans l'étude des textes - Baudelaire lecteur de Bruegel", referindo-se ao livro Knowledge and Belief, de Jaakko Hintikka, para mostrar que o poema Les Aveugles inspira-se no quadro mencionado. A considerar a opinião da crítica, é provável que Baudelaire de fato tivesse em mente aquela pintura quando concebeu o seu poema.
Que Baudelaire tenha partido de uma inspiração plástica para a criação literária não surpreende, considerando o estreito vínculo existente entre o poeta de As Flores do Mal e a pintura, seja como apreciador, seja como crítico de arte. Toda a concepção da modernidade que aflora em seus textos, e que tanta influência exerceu sobre os modernismos que vieram depois, parece resultar de uma longa e dedicada reflexão sobre a imagem, tendo como ponto de partida os quadros e os artistas plásticos. O que intriga, na verdade, é que, apesar de tal relação, o poeta tenha selecionado justamente a temática da cegueira para trabalhar um texto construído a partir de um quadro, de uma imagem visual.
É certo que este quadro guarda as suas próprias peculiaridades, na medida em que também nasce de um outro meio - um texto da Bíblia no qual Cristo critica os fariseus: "Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala". Se analisada alegoricamente, a pintura feita de modo a ilustrar esta passagem deixa clara a moral da história: a crítica aos profetas, cegos porque falsos, que se fazem de guias, e a crítica às multidões, cegas porque crédulas, que se deixam por eles conduzir aos tropeços.
De fato, Bruegel caracterizou-se como um pintor de provérbios. É famoso o seu quadro Provérbios Flamengos, onde inventaria e retrata exaustivamente os ditos populares de sua época, inclusive o do "cego guiando cegos", tema que mais tarde desenvolveria à parte no quadro mencionado. O ponto de vista usado nos Provérbios, no entanto, difere do usado na Parábola. No primeiro, o pintor se coloca numa posição elevada, de modo a oferecer ao observador uma perspectiva quase onisciente de toda a cena, que, em sua imensa variedade, é retratada do alto. Trata-se de um procedimento típico deste artista, decorrente, segundo alguns estudiosos, de sua formação como cartógrafo.
Mas é justamente este aspecto que torna curioso o segundo quadro, cuja perspectiva contraria a atitude tradicional do pintor. Pierre Jensen, na sua História Geral da Arte, chama a atenção para o fato de Bruegel ter invertido o seu ponto de vista habitual, situando o seu olhar próximo ao chão, onde estão os cegos da pintura que olham para cima. Tal fato também não parece ter escapado à percepção de Baudelaire, e de tal maneira que ele o transforma na própria temática de seu poema. Assim, e ao contrário do pintor, literalmente interessado no conteúdo narrativo de seu tema, Baudelaire, na sua leitura do quadro, não parece tão interessado na parábola por ele ilustrada, mas neste que é um aspecto essencialmente plástico de sua configuração: o gesto desconcertante das figuras cujos olhos, "d'ou la divine étincelle est partie,/...restent levés/ Au ciel". Indiferente à interpretação alegórica convencional do quadro, portanto, Baudelaire parece ver nesta pintura sobretudo o detalhe postural das figuras retratadas.
À semelhança do pintor, o poeta se coloca na mesma posição dos cegos, e exclama ao leitor: "Vois! je me traîne aussi! Mais, plus qu'eux hébété ...", sugerindo que talvez não estivesse tão alheio ao sentido da alegoria à sua frente. Talvez, apenas, atentando para a flagrante ausência de uma qualquer testemunha ocular no quadro, o reformulasse, transformando o que seria uma provável condenação da cegueira atribuída aos fariseus num lamento pela comum escuridão e ignorância que une os seres humanos, inclusive o pintor e o poeta, cujos olhares implícitos em suas respectivas obras denotam posições similares, solidárias à atitude algo patética e perdida de seus personagens, que miram o alto de onde viria a luz que não podem captar.
Se é verdade, como comenta Derrida, "qu'on reconnaît les aveugles à leur manière de tourner la tête en haut", será talvez porque, como indaga, "l'oeil intérieur cherche à percevoir l'éternelle lumière qui luit dans l'autre monde?" [1] Talvez Baudelaire não tenha escolhido ao acaso esta pintura para questionar uma realidade que se lhe afigura cada vez mais despojada de valor e de sentido, iluminando com o seu poema detalhes composicionais de um quadro cuja interpretação deveria ser outra.
Além disso, Bruegel não era exatamente um pintor que se poderia chamar de ortodoxo. Assim como não há testemunhas oculares na sua representação da parábola dos cegos, também é patente a indiferença dos espectadores, em muitos de seus quadros, para com o drama da altura e da profundidade, critérios tradicionalmente utilizados na avaliação das obras humanas e na valoração dos sujeitos. E. H. Gombrich comenta sobre como o impulso iconoclasta que já se pressente em Bruegel teria evoluído ao longo do tempo:
The symbol has been recognized as a force of social control and cohesion. [...] As we move from the hierarchical society of the past, problems of symbols and values became, in fact, more acute. We have seen how strongly this type of society imprinted its frame of reference on the terms in which art was conceived. The "noble" and the "vulgar", the "high" and the "low", the "dignified" and the "common" are today not much more than pale, fading metaphors for what were once tangible realities. We need not mourn their passing away in order to realize that there an area of metaphor is passing out of our consciousness which, for centuries if not longer, gave man a symbol of value, however crude. It did even more - it provided a bait or reward of the "process of civilization" itself. [2]
Não se pode afirmar com exatidão se outros quadros de Bruegel, como A adoração dos magos numa paisagem de inverno e o Transporte da Cruz, por exemplo, poderiam já conter um tal impulso revisionista. De qualquer maneira, é curioso observar como, no primeiro, Bruegel empurra a cena da adoração para a borda esquerda do quadro, ressaltando não o motivo religioso, mas um fenômeno natural, a neve e a vida numa aldeia no inverno. Embora ocupe o centro da cena no segundo quadro, a figura de Cristo é praticamente engolida pela multidão que vem da cidade, ao fundo à esquerda, e que num movimento largo caminha a pé ou a cavalo em direção ao Gólgota. A maior parte das pessoas que participam desta excursão popular não parece compreender o significado da crucificação iminente.
A mesma indiferença para com o que constituiria o motivo central do quadro - que escaparia à percepção do leitor se não fosse o indicativo do título - ocorre de maneira flagrante na única pintura que realizou sobre um tema da mitologia grega, A Queda de Ícaro. Não obstante o seu destino trágico, a figura de Ícaro é comumente celebrada pela coragem e temeridade de seu gesto, o gesto irreverente dos jovens, capazes de pôr em risco a própria vida em nome da aventura da descoberta, fugindo assim da mediania em que se conserva em segurança Dédalo, seu pai; celebrado, por sua vez, pela prudência.
Alheio a esta interpretação, porém, Bruegel o retrata de maneira grotesca, reduzindo sua figura a duas pernas e a uma mão que se agitam fora da água, num canto quase imperceptível do lado direito do quadro, evocando ainda os três personagens mencionados na mais conhecida versão do mito grego na época, a adaptada por Ovídio em As Metamorfoses: o lavrador, o pastor e o pescador, que contemplariam Ícaro e Dédalo a voarem no céu, espantando-se e julgando ver deuses que se aproximavam do éter. No quadro, porém, só o guardador de rebanhos contempla o céu, mas sem espanto, e todos continuam calmamente as suas ocupações sem se preocupar com o afogado.
Em seu livro Museum of Words, James Heffernan comenta como o sentido moral atribuído à pintura é em larga escala construído pelas palavras do título com as quais o museu o rotulou:
Consider for a moment what we could make of this painting without its title. Even if its three figures should remind us of book 8 of The Metamorphoses, where the flight of Daedalus and his son is said to have been witnessed with stupefaction by "some fishermen, or a shepherd, leaning upon his crook, or a ploughman, on his plow-handles", could we recognize the splashing legs as those of Icarus?[...]. Would we even know that the splashing legs belong to a drowning man and not to a swimmer happily disporting while the ploughman toils?[...] The honest answer to all of these questions is no.[...] the curator's label leads us to see in the painting a meaning borrowed from another Bruegel painting which hangs in Brussel's Van Buuren Museum and which is almost identical to the Beaux Arts "Icarus" except - a crucial except - for the presence of a winged man flying through the sky at the very top. In the Beaux Arts picture, this unmistakable sign of Daedalus - the sign that would lead us to identify the splashing legs as those of the fallen son - is missing. Its place is taken by the key word in the title. [3]
Portanto, o que o quadro de Bruegel evidencia é a dependência do observador de um conhecimento prévio de um texto - mesmo o curto "texto" de um título - para a "correta" interpretação da pintura, mostrando a clássica hegemonia de um sobre a outra. Afinal, por que teria Bruegel removido a figura de Dédalo de um dos quadros? Seria um gesto de insubordinação contra a escrita, transformando a paisagem menos numa ilustração presa a um sentido pré-estabelecido do que numa imagem autônoma, aberta a vários significados?
Como se percebe em todos esses quadros, embora não possa fugir à determinação da palavra geradora, dominante em sua época, Bruegel procura de todos os modos contorná-la e disfarçá-la na pintura, de modo que a imagem impressione mais espontânea e diretamente do que o texto nela implícito. Segundo uma perspectiva moderna, seria possível dizer que Bruegel parece apelar em sua obra para a "cegueira" do observador, entendendo-a como o despojamento de informações e de doutrinas, levando-o a ver seus quadros com um "olhar inocente".
O conceito do "olhar inocente" é definido por E. H. Gombrich como o mito, persistente e multiforme, da visão pura, neutra, de um olhar transparente e não mediatizado, capaz de apreender o real-em-si, como forma total de exterioridade. [4] Ora, é este mesmo olhar que Baudelaire mais tarde definiria em O Pintor da Vida Moderna como o olhar inaugural que o artista deveria partilhar com a criança, o poeta e o convalescente no mundo em vertiginosa transformação da modernidade. Surpreendentemente, para Gombrich e Nelson Goodman, este seria um "olhar cego".
Tal definição cria um paradoxo quando se considera o quê um verdadeiro cego pode apreender de uma pintura: nada além de conceitos e definições alheias à experiência direta da visão - "this sort of pure visual perception, freed from concerns with function, use, and labels" - experiência que, para W.J.T. Mitchell, "is not the 'natural' thing that the eye does (whatever it would be), but perhaps the most highly sophisticated sort of seeing that we do":
The innocent eye is a metaphor for a highly experienced and cultivated sort of vision. When this metaphor becomes literalized, when we try to postulate a foundational experience of "pure" vision, a merely mechanical process uncontaminated by imagination, purpose, or desire, we invariably rediscover one of the few maxims on which Gombrich and Nelson Goodman agree: the innocent eye is blind. The capacity for a purely physical vision is supposed to be forever inaccessible to the blind turns out to be itself a kind of blindness. [5]
E o que dizer de cegos que contemplam o céu? A esse respeito, Rosalind Krauss comenta sobre a função referencial de imagens totalizadoras como as do mar e do céu: "The sea and sky are a way of packaging 'the world' as a totalized image, as a picture of completeness, as a field constituted by the logic of its own frame. But its frame is a frame of exclusions and its field is the work of ideological construction". [6]
Ao lado do entusiasmo modernista pelo "olhar inocente", porém, há uma sensação de irremediável perda. Quando Bruegel pinta provérbios, ainda que de um ponto de vista crítico, ele não está propriamente submetendo a pintura ao discurso verbal, mas expressando as condições de um mundo onde a arte de contar era possível porque a experiência vivida era partilhada pelos indivíduos de uma mesma comunidade. A relação destes indivíduos para com o passado e a memória era, portanto, de respeito e reverência, uma vez que havia um saber e uma verdade transmitidos pela palavra e reforçados pela imagem ao longo das gerações. Assim, Bruegel criticava não a verdade dos provérbios (da palavra) mas a surdez (ou cegueira) dos homens que não a escutavam (ou não a percebiam).
Por isso, o que hoje é compreendido como uma moldura de exclusões, delimitando o campo de uma construção ideológica, surgiu, de fato, como uma necessidade de transmissão de um saber prático que os jovens poderiam receber com proveito e cuja validade poderia ser confirmada na experiência em comunidade. A natureza do saber era tão pragmática que não raro este tomava a forma de uma advertência, de um conselho, algo que hoje já não é possível ou sequer compreensível, dado o isolamento crescente dos indivíduos em seu mundo particular e privado.
A era das conquistas tecnológicas inaugura, de maneira violenta, toda uma mudança na capacidade da percepção visual. Vê-se, pela primeira vez, o microcosmos e o macrocosmos, vê-se à distância, acima, do outro lado do mundo; vê-se, com a fotografia e o cinema, até mesmo através das malhas do tempo. A humanidade vê como nunca, e como nunca parece ter estado tão cega.
O que a leitura comparada deste infinito circuito de textos e imagens revela é que ou se procura no "céu" da pintura o que não está lá, que é o texto da escritura, ou se procura o que lá está, a pintura de um "céu", amálgama de tintas azuis e ilusão de abóbada sobre uma tela plana, percepção que transforma automaticamente o observador num personagem tão perdido quanto os cegos representados no quadro, deslizando sobre uma superfície lisa e escorregadia onde qualquer ponto de apoio é inútil.
"Ceci n'est pas une pipe" - explicaria Magritte posteriormente, pacientemente, sob a imagem perfeitamente reconhecível de um cachimbo - numa lição de pintura moderna que é uma defesa da natureza silenciosa e autêntica da pintura. A pintura moderna diz apenas que não é "poesia muda". A pintura moderna é também o grande desafio lançado aos poetas, fazendo-os pensar no quanto têm de pintores "cegos", ou no que estão porventura deixando de ver enquanto dormem embalados pelo ruído e deslumbrados pelo poder de suas palavras.
Para Derrida, "un dessin d'aveugle est un dessin d'aveugle", o que parece valer tanto para a pintura como para a literatura, particularmente no caso do quadro e do texto aqui confrontados, cuja temática é explicitamente a da cegueira. Assim, compreendendo os cegos do poema de Baudelaire como uma alegoria dos pintores modernos, podemos vê-los tateando com os olhos um novo "céu" - a recém-descoberta e paradoxal escuridão da pintura pura, a enorme superfície que se abre e se oferece à aventura até então inédita da exploração de formas, de linhas, de luzes e sobretudo das cores, subitamente libertas de significado.
Assim, sob a alcunha de qualquer "ismo" vanguardista, um novo céu - substituído no poema por uma expressão de indeterminação: "on ne sait où" - descortina-se para a arte, anunciando o século da imagem liberta, a imagem cética, cínica, lúdica, lúbrica, lírica, onírica, histérica, histriônica, cor: "Contemple-les, mon âme, ils sont vraiment affreux!/Pareils aux manequins, vaguement ridicules;/Terribles, singuliers comme les sonambules;/Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux". É esta perspectiva que encontramos no poeta Cesário Verde, em seus poemas de franca e entusiástica celebração da modernidade.
O mesmo não acontece se compreendemos os cegos do poema como uma alegoria dos poetas ou de qualquer artífice da palavra. Doentes, privados do antigo poder dos olhos privilegiados com que viam, previam, descreviam, definiam e legislavam sobre o invisível, os escritores modernos transformam-se no alvo cruel de uma auto-ironia que é a de Baudelaire ao interrogar o que ainda estariam eles a procurar no "céu"; e que também é a do escritor José Saramago, em suas sombrias fábulas pós-modernas.
Observe-se que, ao contrário da analogia anterior, melhor tecida na primeira estrofe, o "céu" da segunda estrofe é totalmente distinto: não é uma tela nem sequer uma página em branco, é tão somente uma palavra: "ciel", que parece esvaziar-se juntamente com a substância divina e o brilho intrínseco do olhar, com a interdição da distância ("au loin") e da profundidade, expressa num outro gesto postural, atitude de reflexão, posição de recolhimento, encolhimento e contemplação interior comum aos pensadores, já então definitivamente abandonada pelos cegos ("on ne les voit jamais vers les pavés/Pencher rêveusement leur tête appesantie").
Neste poema, a palavra "céu" - apesar do peso e da profundidade resultantes de séculos de história e de memória - subitamente vê-se privada da magia ou da fé que a fazia ascender apesar da bagagem, e pensar no azul, no infinito, na luz e em tudo o que ela não é, mas evoca. Ou evocava, nos velhos tempos dominados e sufocados pelas narrativas e pelo verbo. Não por acaso a "noite ilimitada" é irmã do "eterno silêncio" que se abate sobre o palco da modernidade - a cidade. Despojados da palavra, resta aos cegos o engano, ora de se julgarem felizes, talvez; ora de confundirem o espectador com a aparência de uma jubilosa celebração, tanto mais bizarra, tanto mais atroz, quanto mais artificial a denuncia o poeta, neste que é um herético, porém profético, soneto.
Cauteloso, no entanto, Baudelaire destaca no quadro não a derrocada dos cegos, mas a aventura reiterada da empreitada humana em busca do saber, onde as mãos se antecipam aos olhos, avançando, tateando no escuro, pressentindo a queda e ainda assim prosseguindo, os olhos inutilmente voltados para cima. Como os cegos, o poeta e o pintor descobrem, na modernidade, que tateiam no escuro. Que nada realmente sabem. Que são, talvez, guias duvidosos, que perderam sua legitimidade em face de uma matéria duvidosa.
No ato da representação, o pintor e o poeta unem-se pelo traço que, em ambos os casos, é invisível em si mesmo:
L'heterogénéité reste abyssale entre la chose dessinée et le trait dessinant, fût-ce entre une chose représentée et sa répresentation, le modèle et l'image. La nuit de cet abîme peut s'interpréter de deux façons, soit comme la veille ou la mémoire du jour, autrement dit une réserve de visibilité (la perspective anticipatrice ou la rétrospective anamnésique), soit comme radicalement et définitivement étrangère à la phénoménalité du jour. [7]
Derrida tece suas observações a partir de um comentário de Baudelaire sobre o desenhista Constantin Guys, no capítulo "A Arte Mnemônica" em O Pintor da Vida Moderna. Diz o poeta:
Refiro-me ao método de desenhar de G. Ele desenha de memória, e não a partir do modelo.[...] Na verdade, todos os bons e verdadeiros desenhistas desenham a partir da imagem inscrita no próprio cérebro, e não a partir da natureza. [...] Quando um verdadeiro artista chega à execução definitiva de sua obra, o modelo lhe será mais um embaraço do que um auxílio. [8]
No olhar "sintético e abreviador" de Constantin Guys, associado ao modo como fundamenta a sua criação na memória, Baudelaire parece encontrar a própria expressão de seu conceito de modernidade - "A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável". Mas a própria natureza dos avanços tecnológicos mostra que ser moderno é menos desejar descobrir o que persiste naquilo que passa, do que tentar retê-lo, impedindo-o de passar. Ser moderno, por isso, tem algo de desesperadamente criminoso. Derrida associa a grande filiação dos escritores cegos, de Homero a Joyce, de Milton a Borges, à dos autores de obras "assassinas", como The Picture of Dorian Gray e The Oval Portrait: Oscar Wilde e Edgar Allan Poe, ambos precursores da modernidade, ambos preocupados com o espelho, o reflexo, o duplo, a representação e o seu inevitável parentesco com a morte - perda, interrupção, destruição, ruína: invisibilidade. Invisibilidade que, como comenta Derrida, advém não só da natureza do traço, mas do fato de que escrever e desenhar são atividades que acontecem "no escuro": seja da memória do já visto, seja da imaginação do ainda não visto, que se deseja projetar. A invisibilidade do traço faz da obra de arte uma provocação ao leitor e ao observador, na medida em que deles exige uma atitude correspondente: vaguear, como o cego, no escuro da imaginação, à procura de um sentido.
[1] DERRIDA, 1992, p. 51. Algo semelhante é sugerido por Platão no Mito da Caverna, que estabelece a diferença entre o homem iludido, preso à crença na realidade das aparências, meras sombras, e o filósofo esclarecido, que ousa libertar-se dos grilhões do engano e buscar o conhecimento onde brilha a verdadeira luz, para, em seguida, comunicá-lo aos prisioneiros da escuridão. Platão, "O Mito da Caverna", in: A República.
[2] GOMBRICH, 1994, p. 27.
[3] HEFFERNAN, 1993, p. 148.
[4] GOMBRICH. 1968.
[5] MITCHELL, 1987, p. 118.
[6] KRAUSS, 1992.
[7] DERRIDA, 1992, p. 50.
[8] BAUDELAIRE, 1988, p.178.
Fonte:
Ermelinda Ferreira: Doutora em Letras pela PUC-Rio e Professora da Universidade Federal de Pernambuco.
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